9º FESTIVAL DO FIME DOCUMENTÁRIO ETNOGRÁFICO DE BELO HORIZONTE - FORUMDOC.BH.2005


O Cinusp "Paulo Emílio" apresenta mais uma oportuna parceria com o forumdoc.bh, Festival de Filmes Documentários e Etnográficos de Belo Horizonte. A exemplo da produção significativa de documentários da região, vencedora nos últimos dois anos do Festival É Tudo Verdade, a 9a edição do forumdoc afirma-se novamente como local privilegiado para a reflexão sobre o formato, desenvolvida em sintonia com os temas e discussões realizadas, inclusive, no âmbito do festival.
Em 2003, a presença de Jean-Claude Bernardet no festival contribuía com a percepção de um esgotamento nos modelos tradicionais de documentário praticados no Brasil, e ensejava outros caminhos. Novos Rumos do Documentário Brasileiro? foi o texto, reproduzido aqui no Cinusp em 2004, no qual ele apontava, ainda que com algum ceticismo, algumas novas perspectivas. De fato, o que podemos atentar este ano e, mais especificamente, em 2004, é uma atenção por parte do festival para a diversidade de propostas. As próprias mostras competitivas traziam o título sintomático mostrar o quê? Ou: como nos é mostrado?, com seu enfoque sobre a metodologia de abordagem.
Refletir sobre o documentário contemporâneo é buscar novas maneiras de se acercar do real. Uma das ênfases de Bernardet era por filmes construídos não mais de modo rígido a partir de situações estáveis, mas que se constroem na lida com a realidade, passo a passo, sem percurso nem destino definidos, o que ele denominou de "documentários de busca".
Esta parece uma de suas preocupações centrais com relação ao documentário, não só sua, mas que se reflete em sua produção crítica recente. Em palestra conferida para a III Conferência Internacional do Documentário sobre dois filmes de busca - 33 e Passaporte Húngaro Bernardet trazia uma modificação de perspectiva.
Se em Cineastas e Imagens do Povo a compreensão dos filmes e de seus mecanismos de construção se baseava tão-somente, na medida do possível, na leitura dos filmes, aqui Bernardet abandona o diálogo com a obra para investigar seus mecanismos a partir do diálogo concreto, mantido por e-mail, com os dois cineastas em questão, Kiko Goifman e Sandra Kogut. Seu interesse não parece tão somente sobre as intenções dos cineastas, estejam elas realizadas ou não nos filmes, mas no processo de construção de cada. Há, portanto, uma atenção sobre a busca de cada cineasta pelo filme. Se em Cineastas... valia o assédio aos filmes enquanto obras abertas a significados múltiplos percorridos com independência pelo espectador (inclusive significados opostos aos pretendidos pelos cineastas), agora vale o filme enquanto proposta aberta a resultados múltiplos percorridos no contexto de uma estrutura de proposta articulada pelo realizador.
Vale correr o risco diante do real sem previsão de resultados. "Sob o Risco do Real" é o título de importante artigo de Jean-Louis Comolli republicado, no Brasil, no catálogo do forumdoc.bh em 2001. Cineasta de mais de 30 filmes, professor e crítico (foi redator- chefe da Cahiers du Cinéma no período de 1966 a 1971), Comolli é sem dúvida referência fundamental para o festival, seja pela presença concreta em 2001 e este ano, quando debateu seu recente filme, seja nas citações literais ou reverberações de suas palavras, verificáveis nas demais edições do festival.
Aqui, cada vez mais em direção a um modo aberto de cinema, registra-se o documentário como modelo capaz de travar o espetáculo disseminado, feito de controle e domesticação. Através de seus roteiros e programas, este se multiplica em representações que pretendem regular até mesmo a vida cotidiana. Onipresença, e também onisciência: a pretensão do espetáculo de tornar a realidade evidente, acessível, controlável. Contra essa lógica "totalizante", "totalitária", forma fechada e acabada do mundo (triunfo do mercado), contrapõe-se o documentário, cuja força advém de seu vínculo e compromisso com uma realidade não transparente e muitas vezes refratária ao controle. O risco que envolve o documentário é o mesmo que garante sua necessidade: o reconhecimento de um mundo ambíguo, aberto, não submetido por completo ao espetáculo.
Modelo aberto, no documentário o conflito não se instaura na relação entre personagens de um dado contexto social, mas no confronto que envolve entrevistado e entrevistador - o risco presente na realização ou o "momento agônico" de que fala Ismail Xavier noutra edição da Conferência. Diferente da objetividade que segrega sem intercâmbios cineasta de um lado e, do outro, indivíduos filmados, a filmagem se realiza na interação de um e outro; o filme é o resultado desse encontro; mais que a realidade de um objeto impresso na câmera, o que se documenta é essa relação. Em outras palavras, o que se invoca é uma prática cinematográfica realizada não por um discurso sem corpo, institucional, mas feita de pessoa a pessoa, contribuindo assim com humanidade contra a "fantasmagoria generalizada do espetáculo mercantil".
A apresentação do forumdoc.bh.2004 evocava, nas palavras de Jean-Louis, Comolli e Robert Flaherty, essa dimensão pessoal, artesanal - "amadora" era a palavra, no melhor sentido que ela pode ter - da prática documentária. Este ano, podemos acompanhar nesta itinerância do festival, composta pelos filmes participantes da mostra competitiva nacional, uma diversidade de títulos não exclusivos ao eixo de produção Rio-São Paulo, dominante em nosso cenário audiovisual, mas que gradativamente abre espaço a outras participações; como exemplo, temos a produção oriunda do projeto Vídeo nas Aldeias, em que vale a afirmação de um ponto-de-vista de componentes de uma comunidade indígena sobre suas práticas, sua cultura, na própria realização audiovisual. Longe de um horizonte de homogeneidade conformada, apresentamos mais esta edição do festival com motivos suficientes para celebrá-la.

André Bomfim.