O CORPO DO CINEMA


Sobre Raymond Bellour

A trajetória de Raymond Bellour é feita de sucessivos deslocamentos. Ela começa com os estudos literários e teatrais nos anos 60-70, que nos deram um elogiado ensaio sobre Michaux (1965), um livro de ensaios e entrevistas ("Le Livre des Autres", 1971), "Edições Críticas das Irmãs Brontê" (1972) até mesmo um romance ("Les Rendez-vous de Copenhague", 1966). Aos poucos, ele se desloca para a crítica de cinema, terreno onde se imporá rapidamente como um dos maiores nomes da França.
Uma análise detalhadíssima de uma seqüência de Os Pássaros de Hitchcock, publicada nos Cahiers du Cinéma em 1969, introduz uma nova linha de pesquisa que terá grande repercussão tanto na França quanto fora dela: a análise do filme, estudo minucioso, quase plano a plano, de uma obra cinematográfica singular, de modo a resgatar o seu modo de funcionamento como máquina de produzir afetos. Bellour dedica-se, durante todos os anos 70, à produção de "análises de filmes" (exemplo: uma análise freudiana de Intriga Internacional de Hitchcock, onde disseca os signos da ameaça de castração que definem o Complexo de Édipo do protagonista principal), a maioria delas referência obrigatória para as pesquisas cinematográficas que serão produzidas na década seguinte. Em 1979, ele compila todas essas análises num volume que se chama justamente "L'analyses du Film" (1979) e dedicará ainda seu doutorado à definição dessa área de estudos dentro da teoria cinematográfica.
Aos poucos, as análises de filmes o levam na direção cada vez mais deliberada da psicanálise. Em 1975, juntamente com Christian Metz e Thierry Kuntzel, ele edita um número especial da revista Communications dedicado às relações entre cinema e psicanálise. Novamente aqui, Bellour redireciona os rumos dos estudos cinematográficos, apontando para uma via que será fértil nos anos 80.
Vinte anos depois do número especial de Communications, o peso excessivo das abordagens freudiana ortodoxa e lacaniana em todos esses estudos parecerá insuficiente a esse inquieto pesquisador e uma nova virada conceitual redicionará novamente a sua visão da subjetividade no cinema. Ao retomar, nos últimos anos, a reflexão sobre a situação do espectador na sala cinematográfica, Bellour toma agora uma nova direção, orientando-se na perspectiva da produção de emoções pelo cinema, à luz não mais da psicanálise clássica, mas dos estudos da subjetividade tal como desenvolvidos por autores como Deleuze, Guatari, Daniel Stern e outros.
Antes disso, entretanto, um interregno fundamental em suas reflexões o conduziu na direção dos novos meios audiovisuais, na França, Bellour foi um dos primeiros a superar os preconceitos contra os meios eletrônicos e digitais e a enfrentar o desafio colocado pelos poetas dos novos tempos, que se aventuram pelos terrenos do vídeo e da informática. Em 1988, juntamente com Anne Marie Duguet, ele lança um novo número da revista Communications dedicado ao vídeo e às novas tecnologias da imagem, introduzindo novamente uma nova área de estudos. Essa é a época em que ele coloca em circulação o seu conceito de passagem, a circulação das imagens entre os meios (uso de fotografia fixa no cinema ou de recursos cinematográficos na fotografia, fusão entre cinema e vídeo, relações entre vídeo e televisão, etc.). Sobre esse tema, Bellour publicou, em 1990, uma estimulante coleção de ensaios sobre o título "Entre-images" e organizou, no mesmo ano, juntamente com Catherine David e Christine van Assche, uma exposição no Centre Georges Pompidou de Paris sob o título "Passages de l’Image".
Atualmente, Bellour é diretor de pesquisas no Centre National de la Recherche Scientifique e professor do American Center of Cinema, escola que ajudou a fundar. Dirige também a importante revista Traffic, de que foi um dos fundadores juntamente corn Serge Daney. Como se isso não fosse suficiente, está organizando a obra completa de Henri Michaux para a Bibliothèque de la Pléiade e prepara o texto de sua reflexão mais recente sobre as emoções no cinema.

Arlindo Machado.