O CINEMA IORUBÁ DA NIGÉRIA
O Cinema Iorubá da Nigéria
Lúcia Nagib
É de particular interesse o programa apresentado pelo Prof. Onookome Okome, da Universidade de Calabar, Nigéria, no ano em que é lembrado o tricentenário da morte de Zumbi. Os seis filmes trazidos pelo professor nigeriano referem-se à etnia iorubá, que constitui também uma das mais numerosas populações de origem africana no Brasil. Os filmes, tanto no gênero drama como comédia, cobrem um extenso espectro, incluindo desde elementos históricos e mágicos até os puramente comercias, e abrangendo ainda reflexões e paródias políticas. O público brasileiro terá a oportunidade de ver como são tratados, em sua terra natal, mitos para ele também familiares, como Ogum, Xangô e Exu, além de ter acesso a um rico panorama da situação política e social da Nigéria atual.
O Rico Universo do Cinema Iorubá
Onookome Okome
Na carta que me convidava a participar deste evento, em homenagem aos 300 anos de Zumbi, uma observação me chamou a atenção. Referia-se à esperança de que a mostra de filmes iorubá contribuísse para preencher a lacuna entre o Brasil - que contém a maior diáspora negra do mundo - com o país mais populoso da África e de enorme diversidade cultural que é a Nigéria. De fato, a presente mostra pode contribuir nesse sentido. Não apenas pela presença significativa da cultura iorubá no Brasil, com seus mitos, história e hábitos, mas, mais precisamente, porque essa cultura contribuiu para a caracterização da vida brasileira.
Porém, essa influência cultural não se deu num só sentido, da África para o Brasil. Logo após a abolição da escravatura, ocorreu o inverso: os ex-escravos que retomaram para a costa oeste africana levaram a cultura e os costumes, adquiridos no Brasil, para a antiga terra natal, especialmente para as cidades em rápido crescimento no sudoeste da Nigéria, dentre elas, Lagos. Tais influências, visíveis, por exemplo, nas opções arquitetônicas de Lagos, são ainda hoje um importante aspecto cultural da Nigéria. Nenhum turista há de perder o distinto e belo traçado das casas de estilo brasileiro que se desenham no horizonte lagosiano.
A ligação entre a Nigéria e Brasil é portanto algo como uma dádiva. É rica, fértil e digna de reavaliação crítica de quando em quando. Um modo de se promover essa reavaliação é pela média cinematográfica, aliás, introduzida na
Nigéria no início desse século, quando Lagos vivia sua fase áurea brasileira.
Apresentarei a vocês, nesses filmes, a cultura iorubá contemporânea em diálogo com o universo clássico iorubá, para apreciação, mas também para uma revisão crítica.
A escolha de seis títulos da mostra se deve a uma razão óbvia, que é oferecer uma descrição geral e abrangente da vida nigeriana contemporânea. Claramente, o mundo contemporâneo do povo iorubá, um dos majoritários dentre os 400 grupos étnicos da Nigéria, terá hegemonia.
Tabu (Eewo) apresenta a visão iorubá clássica, com seus orixás e o caminho que os acólitos e crentes devem percorrer para alcançar a tão aspirada harmonia com o metafísico. A importância desse filme se deve ao fato de ter divulgado um sistema intrincado de existência no mundo dos vivos, dos mortos e dos não-nascidos, com uma estrutura consciente e concisa, despida de esoterismos desnecessários. Rodado na língua iorubá, com voz “over" em inglês, oferece uma maravilhosa visão da veneração dos orixás na Nigéria contemporânea. Estou certo de que isso encontrará paralelos nas artes e instituições brasileiras.
O Vendedor (Vendor) oferece uma imagem ligeiramente diversa. Trata da vida política da sociedade nigeriana após o “boom” do petróleo: decadência, corrupção, nepotismo. É interessante como o estilo narrativo sugere um retorno aos modos da narrativa oral iorubá. Isto se deve ao fato de que o diretor - artista educado à maneira ocidental, no rico ambiente literário da Nigéria - volta à cultura antiga para explicar o que vivemos hoje. Vendor combina o tradicional e o moderno, com um extraordinário senso de responsabilidade.
Mr. Johnson é outro filme brilhante sobre uma outra cultura - a hausa, do norte da Nigéria. Em nosso programa, este filme é significativo porque fornece um quadro geral do discurso colonialista das culturas étnicas da Nigéria. Mr. Johson é uma adaptação do romance de mesmo nome de Joyce Cary, um administrador britânico do norte da Nigéria colonial. Num sentido curioso, o cinema iorubá é uma resposta a esse discurso colonial, sem constituir propriamente um empreendimento conscientemente intelectual.
A Terra é de Deus (Ti Oluwa Ni lie) é um drama contemporâneo da corte iorubá. Nesse contexto intrincado, encontra-se detalhadamente definida a cosmogenia e a metafísica iorubá. A expliação do mundo do “Kabieyesi” (dirigente) se liga ao mundo dos ancestrais, sendo estes ao mesmo tempo passado e parcela do mundo dos vivos. Essas relações intrincadas entre os três mundos se definem numa terceira narrativa, na qual os deuses e deusas desenpenham papéis cruciais.
Um Deus à Beira da Estrada (Un Dieu an Bord de la Route) apresenta o mesmo mundo, mas a partir de uma perspectiva puramente intelectual. É um documentário que procura elucidar os mitos e características das muitas divindades que compõem o panteão iorubá. Ogum, deus do ferro, da guerra e da essência criadora, adquire aqui um papel proeminente. A dimensão intelectual do estudo do universo iorubá é assumida por três eminentes escritores nigerianos: Wole Soyinka, Bode Sowande e Amos Tutuola. Os três usaram abundantemente a cultura iorubá em seus ensaios e prosa de ficção.
Embora esses filmes, em especial os de ficção, sejam populares junto ao público local, apresentam problemas ideológicos. Mostram o mundo conservador iorubá, no qual a cultura é glamourizada. No entanto, a cultura iorubá contemporânea não é estática nem petrificada. Como outras culturas, possui uma dinâmica, mantendo os aspectos cruciais de suas raízes no mundo multicultural da Nigéria contemporânea.
Espero que a platéia brasileira aprecie este programa. Assim como convido vocês para conhecer esse universo cultural, espero merecer o privilégio de penetrar no universo brasileiro - sua cultura, sua vida social, sua essência.
Nosso mundo será melhor, quanto mais frequentes forem essas associações.