BLAISE CENDRARS NO CINEMA


Mostra de Filmes do Colóquio Internacional "Brasil: a Utopialândia de Blaise Cendrars"
Curador: Carlos Augusto Calil (ECA/USP)

A POESIA DE OLHO NO CINEMA

O passageiro que desembarcou em fevereiro de 1924 do cargueiro Formose no Rio 40 graus vestindo terno cinza, o colete abotoado, a manga do braço direito pendendo frouxa, a aba do chapéu de feltro presa à mão esquerda, era um poeta em crise. Desde a publicação dos Dezenove Poemas Elásticos, em que esticara a sensibilidade até rebentar, Blaise Cendrars (1887-1961) havia se “despedido da poesia” para seguir os apelos de uma nova linguagem, o cinema tatibitati, filho ainda bastardo da literatura de folhetim do século passado.
Ao aceitar o convite de Paulo Prado, intelectual diletante e poderoso homem de negócios, Cendrars agarrava-se à oportunidade de fugir das disputas do grand-monde literário, cada vez mais estéreis, além de tentar a sorte e quem sabe fazer fortuna.
"Parto para a América do Sul... me propuseram diversos negócios que vou examinar in loco, especialmente um de cinema que pode ser muito interessante. Vou pensando também no futuro das crianças."
Assim se despedia da mulher e dos filhos, para embarcar numa nova aventura.
Durante a travessia do Atlântico, Cendrars completa o argumento do balé “Après-diner, Cocktail-party, Relâche, La danse à la mode”, encomenda dos Ballets Suédois, para o qual imaginou um “intervalo cinematográfico”. A música deveria ser composta por Satie, a coreografia seria de Jean Borlin, cenografia e figurinos de Picabia. Satie e Picabia não esperaram a volta do amigo, que se demorou no Brasil até agosto.
Assumiram o balé Relâche e Rolf de Maré encomendou a René Clair o filme-intervalo proposto por Cendrars. Assim nascia o Entr´acte.
Em São Paulo, Cendrars era pranteado como grande poeta moderno. O grupo que o hospedava - Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, dona Olívia Penteado, Mário de Andrade e outros - leva-o ao Rio para conhecer o Carnaval e, em seguida, a Minas Gerais onde percorreram o circuito das cidades históricas: São João Del Rei, Tiradentes, Ouro Preto, Congonhas do Campo, Sabará. Cendrars aí descobre a extraordinária obra do Aleijadinho, que considerava “o maior escultor do século XVIII". Compartilha com os brasileiros o inconformismo diante do abandono a que estão relegadas as igrejas e esculturas visitadas.
Na volta a São Paulo, apresenta a Paulo Prado o projeto de um “Grande Filme de Propaganda para o Brasil”, cujo roteiro seria escrito por Oswald, baseado na Capitania de São Paulo, de Washington Luís. A Cendrars teriam impressionado particularmente o episódio do irmãos Lemes e a epopéia das Bandeiras. Uma superprodução silenciosa, orçada em 3 milhões de francos franceses, com capitais da indústria cinematográfica européia e do governo brasileiro. Os atores deveríam ser nativos, a direção ficava com Cendrars, que havia trabalhado em filmes de Abel Gance e passara por uma experiência frustrada na Itália, onde dirigira o longa A Vênus Negra, fracasso de público e crítica.
Em 1918, Gance procurava veteranos de guerra para atuarem como figurantes na cena dos mortos que retornam das tumbas para assombrar os espectadores de seu filme J’Accuse. Cendrars - que havia perdido o braço direito na Primeira Grande Guerra - lhe é apresentado e logo se liga a ele por amizade. Torna-se seu assistente faz-tudo: contra-regra, eletricista, foguista, figurinista, assistente de câmera, de direção, motorista, contador, caixa, figurante. Dois anos depois, Gance irá chamá-lo para trabalhar em La Roue. A contribuição de Cendrars nesse filme é controvertida. Segundo Jean Epstein, a participação dele ficou restrita à filmagem e no âmbito de uma segunda unidade de produção. Ezra Pound, num artigo de 1923, atribui a Blaise Cendrars os momentos interessantes e os efeitos propriamente cinematográficos de La Roue, obtidos por meio de uma montagem engenhosa; o resto do filme é o “usual sentimentalismo imbecil”.
“Domador das locomotivas” de La Roue, Cendrars tinha uma posição ambígua diante do cinema. Como escritor, via a nova arte como um poderoso instrumento de revelação dos homens, a si mesmos, a câmera de filmar - como um bisturi nas mãos do cineasta-cirurgião - ele havia estudado medicina mas não concluiu o curso - e as diferentes lentes da câmera de filmar, como pinças num laboratório. Seriam elas dotadas de capacidades extra-físicas; a lente 28 , por exemplo, “colore os pensamentos”, a 12, “penetra insensivelmente a sua vítima para roubar-lhe a personalidade” etc.
Já o cineasta que visitava o Brasil queria distância da literatura. O cinema que fazia - ou que queria fazer - era popular, sentimental, vulgar, nos antípodas do “cinema puro”, o único que o escritor valorizava. O cineasta fazia filme “para ganhar dinheiro”; para o escritor de O ABC do Cinema, "tudo faz prever que nos encaminhamos para uma nova síntese do espírito humano, para uma nova humanidade e que uma raça de homens novos vai surgir. Sua linguagem será o cinema!."
O cineasta abraçava a física dos negócios; o escritor, para quem o cinema era uma nova religião, a metafísica da linguagem.
No seu projeto de “filme 100% brasileiro”, Cendrars não foi capaz de prever a revolução do general Isidoro Dias Lopes, que estourou em julho de 1924 com violência surpreendente. São Paulo foi ocupada pelos revoltosos e bombardeada pelas tropas federais. A nova realidade política suspendia muitas das veleidades dos modernistas, entre elas o projeto do filme de Cendrars/Oswald, que nunca saiu do papel.
A nossa mostra infelizmentente não conta com nenhum dos filmes dirigidos por Cendrars: o longa-metragem La Venere Nera e o curta Autour de La Roue. Do primeiro não restou cópia; do segundo, a cópia única não sai do Instituto Nacional do Audiovisual Francês (INA). De Abel Gance apresentamos apenas La Roue; J'Accuse, versão de 1918, está sendo restaurado pela Cinemateca Francesa. Da produção estrangeira, programamos o Entr´acte, originalmente concebido por Cendrars, e o Ballet Mécanique, de Fernand Léger, grande amigo do escritor, e cujo filme ilustra dois temas caros a ele: o cinema-puro e o elogio do maquinismo.
Para compor a mostra do lado brasileiro, nos pautamos por alguns critérios: filmes decididamente relacionados com Cendrars, baseados em seus textos, ou em que comparece como personagem; filmes em torno de figuras que se tornariam personagens da obra de Blaise; por fim, filmes que percorrem as paisagens vistas pelo escritor durante suas viagens ao Brasil.
Ao primeiro grupo - filmes em que Cendrars está presente- pertencem os longas-metragens O Homem do Pau Brasil, de Joaquim Pedro de Andrade, biografia visionária de Oswald de Andrade, em que Blaise figura numa anedota ocorrida num almoço no ateliê parisiense de Tarsila, e Um Filme 100% Brasileiro, de José Sette de Barros, baseado em textos do escritor, que procura, sem realismo e com os recursos antiretóricos do cinema dito experimental, reavaliar, 60 anos depois, o alcance da mirada brasileira do autor de Histoires Vraies. Ao grupo juntam-se os documentários Cartas do Brasil, de David E. Neves, crônica amorosa da viagem de um outro francês -Jean-Pierre Léaud, ator de Os Herdeiros - que refaz o itinerário de Blaise num Rio de Janeiro negro, popular, espontâneo, e Acaba de Chegar ao Brasil o Bello Poeta Francez Blaise Cendrars, que tenta reconstituir, com documentos de época e depoimentos, os passos do escritor no Brasil para contrapor a realidade por ele vivida com os textos “brasileiros” que sua imaginação produziu.
O segundo grupo - o das personagens de Cendrars - conta com O Príncipe do Fogo, de Sílvio Da-Rin, documentário sobre o famigerado Febrônio Índio do Brasil, místico homossexual, cujos crimes aterrorizaram o Rio de Janeiro no final do decênio de 1920; O Aleijadinho, primoroso curta de mestre Joaquim Pedro, em que este, com uma câmera ágil, alcança o prodígio de ler a arquitetura e a escultura do artista como um maestro lê uma partitura com sua orquestra. Os sons visuais que dela emergem soam como uma revelação, mesmo para quem conheceu as obras de perto. Memória do Cangaço, de Paulo Gil Soares, utiliza amplamente o filme rodado por Benjamim Abraão sobre o bando de Lampião, cujos feitos Cendrars pretendia relatar, com a habitual dose de liberdade, em “Lampion, histoire d’um bandit brésilien”.
O terceiro conjunto, composto de O Que Foi o Carnaval de 1920!, de Alberto Botelho, São João del Rei e Congonhas do Campo, ambos de Humberto Mauro, e Minas Antiga, de Igino Bonfioli, foi convocado para, numa moldura de época, tornar palpáveis as paisagens - físicas e humanas - que impressionaram Cendrars. Minas Antiga, de 1925, e o carnaval de 1920 são fotografias animadas que poderíam ter sido tiradas por uma Pathé-Baby de algum companheiro de excursão de Blaise.
O Brasil significou para ele um desafio à sua capacidade de inventar e recontar “histórias verdadeiras”. Por preguiça, confessada numa carta a Henry Miller, deixou de escrever “Aleijadinho, ou L´histoire d’um Sanctuaire Brésilien”, em que investira anos de pesquisa. Num livro de 1945, no entanto, menciona sua amizade com Manolo Secca, um espanhol dono do último posto de gasolina nos cafundós do Brasil - a sua Utopialândia - que esculpiu os passos da Paixão sobre pequenos automóveis. Emblemáticas, as personagens brasileiras de Cendrars correspondem ao seu desejo de formular uma síntese desse país fabuloso. “Foi no Rio que aprendi a desconfiar da lógica”, disse certa vez.
Cendrars não fez cinema no Brasil, nem conseguiu deslanchar sua carreira de cineasta, mais divertida e movimentada que a do escritor, e que ainda lhe permitia “pagar um bom bife”. Sua “aventura brasileira”, que durou apenas quatro anos, de fevereiro de 1924 a janeiro de 1928, foi decisiva para renovar-lhe a inspiração e arremessá-lo num novo gênero, o “romance, fora de série”, conforme expressão cunhada por Alexandre Eulálio para dar conta de uma escrita híbrida que recusava a psicologia das personagens e incorporava técnicas emprestadas das artes plásticas, da música e do cinema.

Carlos Augusto Calil.