PASOLINI


PASOLINI, O ERUDITO SELVAGEM

“Em la lucha de clases /todas las armas son buenas / piedras, noches poemas". O verso de Leminski se aplica com perfeição à Pasolini, intelectual multifacetado que, de seus primeiros poemas no dialeto friuliano até seus escritos corsários e seu assassinato de tons sacrificiais em 1975, travou um guerra incessante contra a hegemonia burguesa do capitalismo hedonista de massas.
Podemos dividir a trajetória de Pasolini em fases, segundo as redefinições de estratégias por ele elaboradas em sua luta político-cultural. Num primeiro momento, houve a produção de poesias e romances em dialeto. Segundo Boyer,
“não é a representação embelezada de um universo rural, nem um mundo camponês idealizado, nem um estado de natureza, mas um substância-testemunho, um limiar ou um paradigma para depois se interpretarem as sociedades modernas".
O jovem poeta dessa época, que declarava a forte influência de Rimbaud, tornou-se leitor de Gramsci, fonte de um marxismo ao mesmo tempo engajado e autocrítico, que o acompanharia, ainda que com variações, ao longo da vida. Como parte do mesmo movimento Pasolini ingressou no PCI mas, num primeiro gesto de incompreensão da esquerda institucional frente a sua rebeldia radical, foi logo expulso, perseguido por seu homossexualismo, rebatizado de “desvio idelógico”.
Pasolini muda-se, então, para Roma. Lá ele toma contato com o suproletariado urbano:
“Novo ‘paradigma de autenticidade’, portanto, após o Friuli, as borgate passariam também a ser o próprio símbolo da resistência à burguesia e a seus ideais na obra de Pasolini, constituindo assim o principal suporte ideológico da fase nacional-popular dessa obra.” (p.1)
No cinema, depois de colaborações como roterista (entre outras) com Fellini, em Noites de Cabíria, e com Bolognini, em Uma Longa Noite de Aventuras (ambos disponíveis em vídeo), Pasolini estreou na direção com Accatone, realizado depois Mama Roma. Sua obra seguinte - o episódio La Ricotta, em Rogopag - marca uma transição: ao mesmo tempo que mantém a sacralização da vida subproletária, contrapondo-o a artificialidade da cultura burguesa, anuncia a fase seguinte do autor, chamada mítica, pela adoção de narrativas mitológicas, em contraposição à realidade contemporânea italiana, que Pasolini diagnosticava como dominada pelo neocapitalismo hedonista.
A nova fase surge da avaliação da incapacidade da arte italiana em responder criticamente aos desafios da nova hegemonia:
“Antes de mais nada, o que estava em jogo quando decidi filmar O Evangelho Segundo São Mateus é a possibilidade de dizer alguma coisa num momento em que toda a literatura italiana gira em falso. Os escritores não sabem mais o que dizer. Seu engajamento, ou sua ilusão de engajamento, sucumbiu. Ficou um vazio que foi preenchido por tentativas literárias puristas e decadentes (...) no final dos anos 50, a literatura formalista ressurgiu entre nós (...) Os escritores tinham esperado que a Itália evoluiria em direção ao socialismo. Eles estão descobrindo o seu erro e se encontram sem bússola (..) se vêem sozinhos: não existe mais literatura, existem literaturas. E o ponto zero. As pesquisas de vanguarda readquirem toda sua importância e são inatacáveis, porque não há nada de sondo onde se apoiar para atacá-las. “
“No começo desse período de desagregação e crise, escrevi ' Poesia in Forma di Rosa', um livro desesperado (...) emergiram em mim esses elementos irracionais , religiosos no sentido de míticos, que motivaram em seguida o projeto de um filme sobre o Evangelho Segundo Mateus” (p. 2)
Em O Evangelho Segundo São Mateus o próprio Pasolini identifica sua passagem de um estilo de narração cinematográfica clássico ao que, em um célebre artigo, de “cinema de poesia”, ou seja, um cinema onde a narração, sem perder sua identidade, mistura-se ao ponto de vista das personagens. Com isso, Pasolini buscava uma combinação entre uma visão atéia e a força da religião. No filme seguinte, Gaviões e Passarinhos, o autor adotará a fábula e a alegoria como modo de discutir a relação entre intelectuais e populares, a religião (a nova posição progressista da Igreja), a tradição do cinema neorealista, conjunto de questões em torno da mutação (chamada por Pasolini de “genocídio”) pela qual passava a sociedade italiana.
Num primeiro movimento, Pasolini aposta na África como depositária de uma cultura ainda refratária à nova hegemonia, combinando documentário e ficção, realiza no continente Appunti per uma Orestiade Africana. Essa esperança africana e substituída pela desilusão com a dureza de Medea, que mostra a impiedade da “civilização” frente aos “não civilizados”. A desesperança leva Pasolini a uma nova radicalização, redirecionando suas narrativa mitologizantes no sentido do hermetismo, como modo de resistência ao consumismo. Dentro desse novo paradigma realiza Edipo Rei, Teorema e Pocilga. Na mesma época Pasolini escreve os seis dramas reunidos nem Teatro, identificando no palco - o teatro como arte não Passível de reprodução - um novo de modo de resistência. Contra o tradicional “teatro da tagarelice” e contra o “teatro do gesto” (por ele considerado uma falsa rebeldia, complacente com a dominação cultural burguesa), ele defendará um teatro onde “as idéias são as verdadeiras personagens” (p.3)
Mergulhado na desesperança radical, nascida do diagnóstico da vitória inapelável do inimigo, Pasolini passa a uma nova fase, conhecida como fase “corsária”, mesmo adjetivo por ele usado no título do livro que reúne seus textos jornalísticos da década de 70 (Escritos Corsários), quando se dedicou a uma análise semiótica crítica da cultura. É justamente nesse momento de profundo pessimismo que Pasolini, como uma reação ao domínio da morte, realizará Decameron, Os Contos de Canterbury e As Mil e uma Noites, conjunto de filmes que se tornou conhecido como Trilogia da Vida: uma aposta na celebração do corpo e do sexo, que o autor, incapaz de desistir da luta contra um mundo cada vez mais monolítico, vai buscar em culturas populares antigas. O último capítulo de seu desespero será o diagnóstico da incorporação mesmo do sexo ao hedonismo consumista, uma nova forma de fascismo que, segundo Pasolini, é muito mais poderoso que o da segunda guerra, por que se impõe de forma insidiosa. Seu último filme, Saló, dá forma a essa incisiva e sombria visão do mundo.

Leandro Rocha Saraiva.

* O presente texto baseia-se no livro de Michel Lahud, "A Vida Clara" (SP, Cia. De Letras, 1995).
P1. Michel Lahud, op.cit, p. 64
p2. Idem, p. 73
p3. Idem, p. 94