PASOLINI E OS FILMES DOS OUTROS


PASOLINI E OS FILMES DOS OUTROS
Teixeira Coelho

Em 1996 foi publicada, na Itália, pela primeira vez, sob o título "I Film degli Altri" (Os Filmes dos Outros), uma coletânea das críticas cinematográficas escritas por Pier Paolo Pasolini para diversas revistas. Pasolini foi um primoroso observador da vida cultural e política da Itália, cujas anotações podem ser lidas em volumes fortes que se colocam no mesmo plano de valor ocupado por suas obras de ficção, cinematográficas ou literárias. Em seus textos críticos, Pasolini mostra-se um analista arguto e polêmico, disposto a contrariar idéias firmadas e interesses estabelecidos, quaisquer que fossem as origens de umas e outros. Exemplos dessa sua autonomia de vôo encontram-se nas inúmeras vezes em que, intelectual de esquerda que era, não hesitou em confrontar-se com idéias de esquerda, fossem as do partido comunista ou dos jovens libertários que em 1968 recusaram os modelos do bem pensar de direita e de esquerda.
O que movia a análise de Pasolini não era tanto a força de uma idéia quanto a paixão pela vida, o que faz de seus textos peças ao mesmo tempo extraordinariamente lúcidas quanto extremadas - e, por conseguinte, enviesadas e preconcebidas para além dos limites que se reconhecem num teórico.
Suas críticas cinematográficas não contrariam essa sua disposição geral. Se de um lado é capaz de identificar elementos sociais e históricos que respondem por traços estilísticos de atores e filmes inteiros, e que não haviam sido apontados por outros críticos “mais especializados”, de outro lado e ao mesmo tempo - não hesita em radicalizar seu juízo ao deixar de ver aquilo que não é compatível com seu modelo e, com isso, cometer injustiças patentes contra uns e outros. Isto, porém, em nada diminui o vigor, o fundamento e a força estimuladora de sua visão sobre o tema de seus comentários, abrindo o olho e a imaginação do espectador para imagens e horizontes antes não vislumbrados. Lendo estas críticas é possível ter um entendimento mais diferenciado não apenas da estética dos filmes dos outros quanto, por via negativa, dos próprios filmes de Pasolini, bem como da ética que deveria orientar essa estética. E através de suas páginas, tem-se uma compreensão ampliada de um dos momentos mais felizes do cinema italiano. E sempre fascinante poder acompanhar o jogo que um cineasta mantém com outros e com as obras desses outros. Nem sempre os cineastas dispõem-se a refletir por escrito e publicamente sobre essas relações. Fellini dizia nunca ver os filmes dos outros, o que pode ou não ser verdade. Outros reconheceram abertamente, em filmes (como Woody Allen) ou em livros (como Truffaut) a importância que essa relação com os filmes dos outros teve em suas vidas profissionais. Pasolini, com sua visão interna do cinema, como autor e roteirista, oferece um momento único de reflexão sobre o cinema.
O livro coleta críticas de vários filmes marcantes dos anos que vão de 1959 a 1974, entre eles O Belo Antonio, La Dolce Vita, Rocco e Seus Irmãos, Deserto Vermelho, Gritos e Sussurros, Amarcord, A Noite Americana, A Comilança. O CINUSP montou uma pequena mostra com aqueles filmes que se revelaram mais imediatamente disponíveis (é em momentos como este que se constata a impressionante fraqueza das coleções cinematográficas brasileiras, que não abrigam senão uma ínfima parcela dos filmes que realmente importam). Por motivos de espaço e de direitos autorais, as críticas relativas aos filmes desta mostra não podem ser aqui reproduzidas (uma cópia dos textos originais, em italiano, está à disposição para consulta na sede do CINUSP). Delas é dado um resumo o mais imparcial possível, seguido pelos comentários inevitáveis que provocam no espectador que é o autor destas linhas - comentários eventualmente tão enviesados quanto os do próprio Pasolini mas cuja discussão ele, polemista confortável, não recusaria...

1. De Crápula a Herói: Azares da Crítica Entusiasmada

A crítica que Pasolini faz deste filme (no original, II Generale della Raveré) ilustra, antes de mais nada, um procedimento de vai e vem valorativo presente em mais de um de seus textos. O filme foi lançado no final de 1959, época em que Pasolini se queixa de um excesso de trabalho em sua dupla atividade de roteirista e crítico. Sem dúvida por falta de tempo, Pasolini escreve “ao sabor da pluma”, sem premeditação, sem um plano. Parte de uma idéia que lhe parece pertinente e com ela começa a explorar seu assunto. Começa com uma afirmação incisiva: aquele era o ano do Il Generale della Rovere. Era janeiro de 1960, o ano estava apenas na metade (na Europa, a temporada cultural vai de setembro a maio) e o crítico se atrevia a dizer, em suma, no dia 5, que pouco ou nada superaria o filme de Rossellini. Il Generale era o filme do ano.
Logo em seguida, no entanto, Pasolini se lamenta que o melhor do diretor estava na verdade no começo de sua carreira, quando conseguira firmar um estilo íntegro em seguida perdido. Tenta explicar por que isso acontecera. Celebra o Rossellini realista capaz de “redescobrir” a Itália oculta atrás da máscara “cretina” de indiferença e inconsciência que o cineasta fora capaz de arrancar. E nota que isso se devera em grande parte ao fato de o homem certo (Rossellini) estar na hora certa no lugar certo. Esta observação, que poderia deslustrar um tanto a insígnia do diretor ao lastrear seu mérito numa casualidade, é em seguida atenuada pela afirmação de que, no entanto, Rossellini fora capaz de demonstrar, naquele instante, uma alma riquíssima, um talento quase mágico.
Imediatamente em seguida, no pico contrário de sua crítica relativizante, anota que sentimento, sensualidade, magia e intuição não bastam para fazer uma grande obra: faltara a Rossellini de início, segundo Pasolini, o mesmo ímpeto cultural que abandonara a Itália no pós-guerra. Na frase seguinte, sem demonstrar por quê, afirma que Rossellini depois conseguira em todo caso apoderar-se da “cultura” daquele excepcional momento histórico, tornando-se um demiurgo. Num curto parágrafo, Rossellini vai do acidente (estar no lugar certo na hora certa) à genialidade consciente. A primeira vista, só um texto redigido ao vento incerto da reflexão do momento poderia abrigar essas oscilações.
E Pasolini continua por mais um parágrafo nesse rumo. Toda aquela sensualidade, talento e magia do início de pouco servira a Rossellini porque, afirma, depois de um início forte o diretor de II Generale caíra num vácuo. Do qual sai, entretanto, por novo passe de mágica, para fazer este filme, simbolizando, entre outras coisas, que a Itália reconquistava uma cultura própria afinal, não tão esplendorosa quanto a anterior mas arguta como a primeira não fora. E aqui a crítica se torna paradoxal porque essa mesma cultura, que libera a Itália para uma nova fase, acaba sendo a responsável pelo fato de o novo filme de Rossellini ser... menos bom que os anteriores! Pasolini diz por quê: haveria algo de excessivamente intencional no filme, algo já morto, algo de convencional (esse é o filme do ano, afinal, ou não? como pode um filme excessivamente convencional ser um belo filme?) Na frase seguinte, lodo após o ponto final, o filme que era excessivamente construído (portanto artificial) é outra vez um filme íntegro e unido, quase todo belo, pelo menos nobre.
E “de repente” Pasolini recorda que naquele ano outros filmes “notáveis” tinham vindo à luz, como A Grande Guerra, de Mario Monicelli, com dois fantásticos atores no elenco, Alberto Sordi e Vitorio Gasmann, e que dividira o Leão de Ouro de Veneza daquele ano com... II Generale.
E Pasolini vai lembrando de outros filmes vistos. Recorda-se que a “nouvelle vague” estava começando e que não podia dizer muita coisa a respeito porque “não tinha informações”. Em seguida, admite movimento francês. Se não estava informado, por que não teria interesse? Não importa. Diz que a custo conseguira suportar Les 400 Coups, de Truffaut: a cada plano na tela tinha vontade de sair correndo da sala, tão irritado ficava com a “presunção do iniciante”. E, para manter o ritmo esquizofrênico desta crítica, entre parenteses admite que, pensando melhor, à distância, o filme francês parecia bem melhor, com cenas lindíssimas...
Recorda ter visto filmes americanos mas só cita a primeira desilusão com Hitchcock, Intriga internacional, depois de dezenas de filmes prazeirosos.
E Pasolini fecha sua crítica dizendo que vai concluir com “o mais bonito filme do ano”, em sentido absoluto: Contos da Lua Vaga de Agosto, de Mizoguchi, que considera, com Chaplin, o maior poeta dos primeiros cinqüenta anos do cinema. O filme do ano não era mais II Generale...
A pressa poderia explicar essa oscilação inusitada. Melhor que ela, o entusiasmo: Pasolini era um espectador entusiasmado.
Entusiasmado com os filmes e entusiasmado com as idéias que lhe vinham à cabeça ao vê-los. Talvez mais entusiasmado com isto do que com aquilo. Sem dúvida, Pasolini não era um entusiasmado comum, e isto pode explicar as correções de rota que introduzia em suas apreciações, fossem elas positivamente entusiasmada ou negativamente entusiasmadas. Mas, mesmo um entusiasmado incomum não se livra da privação momentânea de razão...

***

2. Uma Injustiça contra Alberto Sordi

Em 1960, a figura de Alberto Sordi estava por toda parte no cinema italiano. Em seguida, haviam sido lançados vários filmes maiores do ator, entre os quais A Grande Guerra, e alguns filmes de episódios, ligeiros, que faziam a delícia, na aparência inconsequente, de muitas platéias. Pasolini prognosticava, acertadamente no pequeno ensaio de 19 de janeiro de 1960, que o nome do comediante seria ouvido ainda por um bom tempo, uma vez que os grandes cômicos do cinema italiano, como Totó e Aldo Fabrizi, haviam envelhecido. Alberto Sordi parecia ter o monopólio da risada.
Mas, segundo Pasolini, Sordi não fazia rir no exterior. Para tentar entender a razão, comparava o caso de Sordi ao de Ana Magnani. Ambos eram romanos, ambos oriundos das classes populares, ambos usando o dialeto. Mas o particularismo de Ana Magnani, observava com acerto Pasolini, fora logo compreendido e universalizara. Seus gestos, sua risada, sua impaciência, seu modo de dar de ombros, seu olhar de desprezo, sua força de vontade foram aceitos internacionalmente.
Com Alberto Sordi, Pasolini achava, equivocadamente, que o caso era outro. Sordi surgia, a seu ver, como intraduzível. Apenas os italianos pareciam entendê-lo, sentir prazer com sua figura.
Pasolini se perguntava sobre a espécie de riso que Sordi provocava. E concluía que se tratava de um riso do qual as pessoas se envergonham um pouco. Um exemplo que Pasolini encontra para ilustrar sua tese é o papel de Sordi no filme Maglian, de F. Rosi, no qual, a certa altura, o personagem de Sordi vende os bens de um grupo de alemães não apenas pobres como atingidos pelo luto. A comicidade de Sordi, interpreta Pasolini, é aquela que nasce do atrito com a variada e ao mesmo tempo padronizada sociedade moderna, que surge da figura de um homem cujo infantilismo, em vez de gerar ingenuidade, candura, bondade, disponibilidade, produz egoísmo, canalhice, oportunismo, crueldade. Pasolini via no infantilismo a pedra de toque da operação artística moderna, o ponto culminante da grande arte burguesa deste último século, o deus máximo do decadentismo, palavra e conceito que privilegiava. E no interior do infantilismo é que Pasolini vê os grandes nomes da comicidade do cinema. De Carlitos (Chaplin) a Tati há uma longa série de personagens que são crianças, crianças crescidas mas crianças. Considera-os personagens anárquicos (sem razão sob este aspecto, como se verá a seguir), vagabundos, nostálgicos, fora de lugar, falidos, inadaptados a esta sociedade, em continuado atrito com ela - mas essencialmente, por tudo isso, crianças. E concluía Pasolini que nenhum dos grandes cômicos de nosso tempo fora ou era verdadeiramente revolucionário, não passando de figuras humanitárias, moralistas, preocupadas em apontar os males da sociedade sem apontar-lhes um remédio — porque disso não seria capaz o infante, o jovem existente dentro de cada um deles. E isto mesmo que Pasolini reconheça que em todos os grandes cômicos de nosso tempo havia uma profunda revolta moral a qual, embora infantil e improdutiva (e isto por causa daquilo) não deixa de estar fundada na bondade.
E, a seu ver, era a bondade que faltava a Sordi. Carlitos fazia rir porque era bom, e o mesmo aconteceu com Harold Lloyd, o Gordo e o Magro e tantos. De modo análogo, Ana Magnani — La Magnani— também agradou a todos, universalmemte porque, além de apaixonada, era generosa.
Sordi não, os personagens de Sordi eram, como sugeriu um outro filme décadas depois, feios, maus, nojentos. Disso os italianos sabiam rir, porque se reconheciam nos traços dos personagens de Sordi, miseráveis, cínicos — e patéticos. E saiam, os italianos, envergonhados do cinema, envergonhados por terem rido — por terem rido da própria vileza, do próprio infantilismo, da própria indiferença (o “qualunquismo” italiano) diante de tudo.
Pasolini via em Sordi não o produto do povo (como a “verdadeira Magnani”) mas da pequena-burguesia, ou daqueles estratos populares não operários que surgem nas periferias extremas da cidade e que no entanto se colocam sob a influência ideológica da pequena-burguesia. Analisando a biografia de Sordi, Pasolini se interessa por um detalhe de sua infância: o de menino educado praticamente na sacristia de uma igreja e que, ao crescer, não encontra na vida a mesma linha de continuidade moral, de tal modo que os atos que ao menino honesto pareciam reprováveis precisam, agora, ser justificados por uma única força maior amoral: a necessidade. Os que se justificam com o recurso à necessidade, para Pasolini, não vêem como ocupar-se dos males dos outros. Desse egoísmo vital surge o infantilismo como doença, que se torna maldade e cinismo. E isso era o que, nos personagens de Sordi, cativava os italianos e os tornava capazes de perdoá-lo, porque conheciam o que estava por trás de cada um de seus atos.
Fora da Itália porém, julgava Pasolini, não havia católicos, apenas protestantes, puritanos ou católicos não muito católicos, para os quais seria difícil rir de um modo de vida que era a própria materialização do pecado, o mal encarnado, o mal sem remédio, sem contradição e sem atenuantes. Os estrangeiros não conheceriam a arte de “arrangiarsi”, em italiano, ou de “dar um jeitinho”, como dizemos, ou se a conheciam a viam sob uma luz romântica, não crua e nua — de tal modo que a ferocidade e a vileza do comportamento dos personagens de Sordi lhes seria inconcebível.
Essa comicidade de Sordi era descrita por Pasolini como pequeno-burguesa e católica, típica de alguém sem fé e sem ideal e que por isso mesmo não podia chocar a censura italiana, sempre muito ativa contra as obras idealistas, mas que chocaria aqueles que possuíssem uma sensibilidade cívica e moral forte como, acreditava Pasolini, os franceses e os anglosaxões.
Reconhecia Pasolini que Sordi criara seu personagem básico a partir da sociedade em que vivia (de modo, escreveu, acrítico ou inconsciente). Entendia que para tornar-se um verdadeiro cômico universal Sordi precisava de maior senso crítico ou, em outras palavras, de um pouco de maldade intelectual depois de tanta maldade visceral. Precisaria ter criado um personagem com maior consciência de si e do mundo, ainda que essa consciência fosse irracional e sentimental — uma consciência que lhe tornaria possível expressar o toque de piedade oculto na sombra de sua maldade e capaz de comover apesar da monstruosidade dos atos de seu personagem.
Pasolini acreditava que a receita dada em seu ensaio era viável porque, entendia, ela tinha sido posta em prática pelo comediante num filme como a Grande Guerra, no qual Sordi vive o papel de um personagem mergulhado tanto na maldade e amoralidade de um “bebê antropófago” quanto, simultaneamente, na pele de um pobre coitado morto de fome e no entanto sustentado por uma força moral que sente ainda viva numa parte ínfima de si - força que incutia no espectador.
Entendia Pasolini que se Sordi não fosse capaz de integrar em si essa contradição, se não fosse capaz de entender que não se pode rir se no fundo desse riso não houver um pouco de bondade, sua comicidade acabaria por ser um dos tristes fenômenos daquela “feia Itália” dos anos 60. Se, porém, compreendesse essa proposta, poderia contribuir para a luta “reformística e moral” em que o próprio Pasolini se achava empenhado.
Este ensaio é bastante revelador tanto da ideologia do tipo criado por Sordi quanto daquela, engajada e facciosa, esposada pelo próprio Pasolini. Seu ponto de partida é relativamente equivocado, ao afirmar que fora da Itália não se ria com o personagem de Sordi - a menos que Pasolini visse no Brasil e em toda a América Latina, por exemplo, uma mera extensão da Itália, coisa que, sob certo aspecto, não deixa de ser verdadeiro. “Fora da Itália” significava essencialmente, para Pasolini, a França e os países anglossaxões, visão de todo modo extremamente redutora. Fato é que países como o Brasil e outros tantos latino-americanos eram e são feitos basicamente de católicos tão bons ou tão maus quanto os católicos italianos, nada puritanos nem majoritariamente protestantes, e de “católicos” largamente despidos de “sensibilidade cívica e moral” e que, além de terem pouca ou nenhuma fé, se reconhecem a si mesmo como destituídos de ideal. Por aqui, se ria e muito com Sordi. Como os italianos, éramos capazes de entender no personagem de Sordi nosso próprio personagem nacional “sem caráter” como Macunaíma, e riamos, ao ver Sordi, de nossa própria inconsequência, egoísmo, vileza e maldade — tanto quanto os italianos.
Pasolini é particularmente feliz ao descrever Carlitos e outros cômicos como tipos infantilizados, moralistas, humanitários e nada revolucionários, rápidos na crítica aos males sociais porém incapazes, porque infantis, de propor-lhes uma alternativa. Ao fazer essa descrição, Pasolini fornece retrospectivamente, para muitos de minha geração, bons motivos para nunca termos gostado muito (ou nada) da filodramaticidade (para usar um termo caro a Pasolini) ou do sentimentalismo piegas, e ocasionalmente oportunista, do personagem de Chaplin (ou terá sido do próprio Chaplin?). Quando descobrimos Sordi, com seu negativismo corrosivo, foi um deslumbramento — que começou com sua atuação em Os Boa-vidas (Il Vitelloni, literalmente os novilhos, figuradamente aqueles que, jovens e não tão jovens, vivem à custa da família, esperando eternamente por um emprego), lia nesse filme uma sequência antológica em que o personagem de Sordi, acompanhados de amigos, playboys provincianos numa Itália sem muitos horizontes econômicos, retornam certo dia à cidade na carroceria de um caminhão. A certa altura, na estrada, passam por alguns trabalhadores a pé. O personagem de Sordi vira-se para eles, chama-lhes a atenção gritando “Trabalhadores!” e em seguida faz na direção deles, com os braços, o gesto obsceno da “banana”, concluído com o clássico ruído bucal muito estimado pelos italianos e que se assemelha a um peido. Poucos metros à frente, no entanto, o caminhão sofre uma pane; os trabalhadores insultados pelo personagem de Sordi, revoltados, correm em direção ao caminhão e uma confrontação física pode acontecer... Pasolini não comenta esse filme mas certamente teria odiado a personagem de Sordi porque nele veria uma confirmação de sua tese, exposta já no título que poderia ser igualmente traduzido por Os crianções, Os mal-crescidos. Talvez não conseguisse perceber (ou não reconheceria) a ambiguidade prevalente em torno da atuação da personagem de Sordi. O fato é que havia nessa personagem um sinal antecipado do anarquismo dos jovens que daria a tônica do final da década de 60 de, no mínimo, um sinal de saudável iconoclastia que rompia os compromissos com uma direita fanática e com uma esquerda não menos fundamentalista e iconofílica, reverenciadora de santos não menos que seus opositores. Pasolini deixa claro seu engajamento ideológico ao prezar a origem popular da Magnani e ao afirmar sua aversão à filiação espiritual supostamente pequeno-burguesa de Sordi. Fazendo isto, supõe que o personagem de Sordi na tela era mero reflexo e prolongamento natural, inconsciente, da pessoa de Sordi, negando a esse que foi um dos maiores atores cômicos do cinema italiano a possibilidade de que tenha criado seu personagem conscientemente (como todo grande cômico) a partir de uma observação da realidade circundante com a qual não obrigatoriamente concordava. Pelo contrário: em mais de um filme seu personagem ficava não raro (às vezes no final do filme, o que é mais incisivo) exposto na fragilidade de seu cinismo, ainda que essa exposição não tivesse, nem de longe, o caráter redentor, de acusação moralista, voltado para uma “reforma moral” como queria Pasolini. E revelador, nesse ensaio, o fato de que Pasolini não estabelece uma distinção entre o ator, Sordi, e seu personagem; nunca diz que no filme tal o personagem feito por Sordi faz isto e aquilo: diz que no filme tal, Sordi faz isso e aquilo, procedimento de confusão típico, mais normalmente, do espectador incauto de telenovelas e não do espectador iniciado e, menos ainda, do crítico sensível que ele foi. Esta confusão entre ator e personagem, sem dúvida intencional ainda que não admitida, é outro sinal de que nesse ensaio Pasolini antes de mais nada, e mais uma vez, quer prestar homenagem a seu próprio meio de origem, o meio popular cujos traços físicos, se não os morais (que ele não poderia endossar, dada sua própria opção sexual, incompreensível para os de seu meio embora aceita por aqueles do meio que ele desprezava), ele representou (muitas vezes através de si mesmo como ator não entusiasmante) em vários de seus filmes.
O fato é que Sordi foi um grande ator do cinema mundial, capaz de fazer rir e de comover, como Pasolini queria e ao contrário do que ele insistia em não perceber. Pasolini, neste ensaio, está cheio de boas intenções morais e sociais e se esquece, talvez por um instante, que o bom cinema, como a boa arte, não existe para evidenciar boas intenções mas para expressar o que tem de ser manifestado mesmo que isso choque e fira as pessoas.
Ficará na memória do admirador de Sordi-ator não esta crítica menos feliz de Pasolini mas a homenagem que outro grande cineasta italiano, Fellini, fez a Sordi ao colocar na figura do diretor de 8 1/2, representado por Marcelo Mastroianni, um outro achado imortal de Sordi para um de seus personagens que fingia mancar horrivelmente de uma perna em consequência de um suposto ferimento de guerra, num recurso para tirar proveito da ingenuidade alheia. Certamente Pasolini diria que não outra coisa se poderia esperar de um diretor católico e pequeno-burguês trabalhando com um ator idem. Fato é que Fellini sentiu em Sordi aquilo que Pasolini, por cegueira ideológica, só conseguiu racionalizar. E mal.

3. O Belo Antonio ou As Idéias do Roteirista

Nesta crítica, de 9 de fevereiro de 1960, Pasolini explicita seu credo estético-ideológico (ou a ética de sua estética). Vê o filme em sessão privada. A montagem tinha sido feita às pressas, o som era provisório. Mas tinha de vê-lo de qualquer modo: era o roteirista do filme. E conta como chegara até essa condição. Há anos Bolognini pensava naquele filme, tirado de um romance de Brancati. Mas nenhuma versão dos vários roteiros inicialmente feitos satisfizera os produtores. Nem a do próprio Brancati. Não pareciam comerciais o bastante... O então jovem produtor Alfredo Bini, que depois bancaria filmes do próprio Pasolini, resolve arriscar, acreditando que um cineasta deve fazer um filme como quer fazê-lo, não como o produtor acha que deve fazê-lo. E Bini convida Pasolini para tentar outra versão do roteiro.
Pasolini relê livro que já conhecia e não gosta muito - porque o mundo ideológico do autor, como diz, era “confuso”. Este é um tópico recorrente nas críticas de Pasolini: aquele livro (como La Dolce Vita, de Fellini) não tinha conteúdo ideológico, não tinha estrutura — que dizer, não havia nele uma análise histórico-política, não havia uma demonstração sociológica, na qual Pasolini insistia, mas, apenas, uma confusão de sentimentos, insatisfações, sensualidade exacerbada, amargor, visão moralista e “elegante” da sociedade e lirismo na psicologia das personagens, extravagantes e típicas, sempre à beira da anedota, perdidas sem uma linha para avaliar a própria existência. O romance tinha belos momentos, belas personagens, admite, mas não continha um filme - quer dizer, não continha um filme como Pasolini entendia que os filmes deveriam ser feitos.
Pasolini compartilhava de algumas das noções básicas de construção de um filme em vigor naquele momento como ainda agora: um filme deve basear-se em dados muito simples, deve ter uma moral precisa e quase óbvia e uma estrutura (o enredo) igualmente precisa e óbvia. E o que mostra, por exemplo, o recente O Jogador, de Robert Altman, ao se insistir ironicamente na tese de quando um diretor vai a um produtor para pedir seu apoio para um filme, deve ser capaz de explicar sua história em 20 palavras — e de preferência vir já com os nomes dos atores, o que dá resumos como este hipotético “Michael Jackson salva Madonna de cientistas irlandeses mercantilistas que querem usar o corpo da performer para clonar mulheres a serem vendidas para sheiks árabes...”
O problema é que, para Pasolini, não havia no romance uma mensagem. O livro era apolítico e sua moral, ambígua. Podia ser antifascista mas isso não bastava depois do fim do fascismo.
Em seguida, Pasolini descobre o “verdadeiro” conteúdo do livro: não era uma história singular de um impotente, decreta Pasolini, deveria ser a história da impossibilidade de ser cidadão enfrentada por quem tinha um problema específico de impotência. A partir daí, Pasolini irá construir um enredo e uma moral que o espectador verá no filme. Insiste apenas em contar qual o achado que permitiu ao filme tornar-se factível do ponto de vista sexual, o que implicava em como apresentar a impotência da personagem central para o público. A solução foi mostrá-la com uma impotência seletiva: a personagem tinha sexo com qualquer outra mulher menos com a que verdadeiramente amava, aquela que idealizava.
Pasolini escreveu o roteiro e depois nada mais soube do filme até a sessão do dia anterior. Descobre que o filme não guardou nada do romance de Brancati, o que lhe agrada: no lugar da beleza lânguida da personagem magnificamente representada, anota, por um Marcelo Mastroianni que acabava de rodar La Dolce Vita, havia agora uma personagem introvertida, angustiada, ora muito fechada ora muito expansiva, tomada por uma dor contida porém apaixonante, contagiante: um romântico de tipo decadente (outra palavra-chave em Pasolini) como se vê em certos estratos da burguesia. O filme não tinha nada de polêmico, nem de estranho, nem de naturalista: parecia, mais, um épico-psicológico (e Pasolini se alegra com seu classificação paradoxal, sublinhando-a com um ponto de exclamação) com o qual Bolognini deixava para trás trabalhos anteriores, “superficiais”, e mostrava-se, neste filme elaborado sobre o roteiro do crítico, um cineasta de primeira grandeza...

4. La Dolce Vita: uma Crítica Exemplar, uma Crítica Comprometida

Pasolini inicia seu comentário de 23 de fevereiro de 1960 lamentando-se de que a crítica italiana, literária ou cinematográfica, vinha fazendo apenas análises internas da obra —cujas origens Pasolini identificava em Croce e que ele qualificava de “crítica burguesa”, por ele descrita como uma crítica tecnicista, especializante, que tratava a obra como se fosse um prodígio individual a ser vista em laboratório. Pasolini, pelo contrário, queria ver a obra como produto cultural e histórico e tratá-la não de um modo tecnocrático, como o faziam os ensaístas acadêmicos, nem de uma maneira jornalística, rapidamente informativa com ares de profundidade: seu modo seria o interpretativo. Esse o tipo de crítica que queria fazer de La Dolce Vita, um filme que Pasolini tem a sensibilidade suficiente, já no próprio momento de seu lançamento e não a posteriori, para considerar importante demais para passar em silêncio.
Inicia dizendo que Fellini, como mostra no filme, é um autor, não um mero diretor de cinema. Talvez, diz, um autor não tão grande quanto Chaplin, Mizoguchi ou Eisenstein (mas, veja-se a declaração dele contra Eisenstein, incluída neste catálogo) mas um grande autor, daqueles que se sobrepõem a todos os demais participantes do filme - atores, montador, roteirista etc - com exceção talvez do responsável pela música, o notável Nino Rota.
A análise de Pasolini, propondo aqui um modelo sugestivo, começa com a identificação de dois planos no trabalho do autor cinematográfico: um, a preparação do objeto de filmagem e outro, a filmagem em si e a montagem. A partir deste ponto, observa que:
1) Fellini usa os atores de modo extravagante, obrigando-os a uma total reinvenção de si mesmos, violentando-lhes a personalidade. O resultado do uso de intérpretes assim “deformados” é o aparecimento de personagens que parecem saídas de um documentário, tirados diretamente da realidade e jogados no universo felliniano;
2) Fellini recorre a uma constante dilatação expressionísta das roupas e dos ambientes, que se manifesta em três ordens:
a) diletação do tipo chargística (de charge de jornal), caricatural (pessoas com cabelos exageradamente singulares, casacos “injustificáveis” (sic);
b) dilatação da atmosfera, que Pasolini considera típica do cinema decadente e que significa mostrar quase todos os ambientes de Roma, dos mais elegantes aos mais abjetos;
c) dilatação puramente expressiva, formalista, como na cena do milagre, com os holofotes e os guarda-chuvas abertos sob o aguaceiro.
Estes traços, relativos ao primeiro plano, não estão isentos de um toque naturalista. Quanto ao segundo:
1) os enquadramentos e movimentos de câmera criam uma auréola ao redor do objeto, que torna irracional e mágica sua inserção no meio que o circunda. Quando uma plano ou sequência começa, a câmera está quase sempre em movimento, e em movimento nada simples - o que não impede que, no meio desse balé, se introduza um plano muito simples, de tipo quase documentário, quer dizer, não construído, não artificial, não estilizado;
2) o fraseado das sequências é amplo, muitas vezes lento, como numa página de Proust — e que também admite contradições, com eventuais panos brevíssimos.
Mesmo reconhecendo que essa descrição e análise são sumárias, Pasolini entende que é o suficiente para considerar o filme de Fellini como pertencendo à linhagem do decadentismo europeu, definido, de um lado, pela complacência visual, registrada em imagens que saem de sua função narrativa para mostrarem-se em estado puro, com todo o encantamento resultante, e, de outro, pela dilatação semântica, vista no fato de que nenhum significado em seu filme é puramente instrumental mas, sim, excessivo, sobrecarregado, lírico, mágico ou violentamente verístico. Como o léxico decadente, também o de Fellini é colorido, incomum, bizarro, superescrito, com pastiches expressivos provenientes das mais diversas origens. Também sua sintaxe, como a decadente, é subordinativa, retardante, com rápidas interjeições e feita de sintagmas simples.
O melhor termo que poderia encontra para qualificar esse filme, escreve, seria “neodecadente” se o neo-realismo cinematográfico tivesse sido tão importante que tivesse superado o decadentismo histórico a ponto de exigir uma renovação. Como no entanto, afirma Pasolini, o período de engajamento neo-realista foi breve, o conservadorismo rapidamente o circunscreveu e delimitou. O momento político era de distensão ideológica, o que estaria levando os próprios comunistas a redescobrir o decadentismo e nele procurar elementos positivos e progressistas. Os comunistas talvez - mas não Pasolini, um comunista sectário, como ele mesmo concede. Para ele, Fellini era o sinal mais claro de que entrava em vigor uma ideologia estilística que marcara a literatura européia do decadentismo, de Baudelaire à Nouvelle Vague (que, para ele, era simplesmente reacionária; mais tarde, diria que Godard era um homem simples, portanto um igual a ele).
Pasolini faz, também, uma aproximação entre Fellini e um escritor de vanguarda italiano, C.E. Gadda. Ambos, para Pasolini, aceitariam as instituições dominantes, o Estado e a Igreja, sem discutir-lhes a estrutura e vendo-os como dados absolutos, não modificáveis — traços que a sátira grotesca de Gadda e a mágico-lírica de Fellini não mitigavam.
Em outras palavras, um e outro seriam conformistas embora com origens distintas. Gadda, um engenheiro, se formara antes do fascismo e sob o signo do positivismo, um positivismo não provinciano que lhe permite realizar obras dotadas de um espírito racionalista e historicizante - além de lírico, o que Pasolini não anota. Segundo Pasolini, Gadda crê nas instituições do estado, embora as critique.
Fellini, pelo contrário, se formara na Itália do fascismo, ignorante e estúpida. E mesmo tendo sido não fascista quando necessário, do modo mais viril e democrático, a formação cultural de Fellini é vista por Pasolini como provinciana. O resultado dessa diferença seria que enquanto para Gadda as instituições sociais são moralmente civis, para Fellini são mitos. Pasolini não diz mas fica claro que ele acredita que, quando se reconhece uma instituição como civil sempre existe, contra ela, o recurso da atuação política. Quando essa instituição, no entanto, é vista como um mito, como faria Fellini, o recurso seria apenas um outro mito - e nesse contra-mito, feito de fantasia individual, angústias e alegrias constituintes de seu patrimônio íntimo e místico, Pasolini não reconhecia uma força de oposição.
Esta cultura de Fellini, que Pasolini considera própria do século XX, implicaria na recusa à racionalidade e à crítica, substituídas pela técnica e pela poeticidade. E , escreve Pasolini, mesmo quando alguém se recusa a adotar uma ideologia, uma ideologia sempre existe nessa pessoa.
A ideologia do não-ideológico Fellini seria de tipo católico, uma vez que a sua problemática central seria a relação não dialética entre pecado e inocência (não dialética porque não medida pela história material dos homens mas pela graça divina). Esse irracionalismo católico, ingênuo, quase infantil de Fellini, se responsabilizaria pelo fato de não ter seu filme perspectivas internas ou graduação de valores morais. Tudo, no filme, se acrescenta a tudo, sem subordinação, formando o barroco felliniano que, para Pasolini, é simplista.
Daqui Pasolini parte para surpreender-se com o fato de ter a Igreja condenado o filme por seu imoralismo, não percebendo que La Dolce Vita era o grande produto do catolicismo dos últimos tempos, um catolicismo para o qual os dados do mundo e da sociedade se apresentam como eternos e imutáveis, com suas vilezas mas também com uma graça que paira sobre a cabeça de todos, prestes a baixar sobre todos e que na verdade sobre todos já baixou, circulando de pessoa para pessoa, de imagem para imagem.
Pasolini reconhece que La Dolce Vita é uma obra de peso no cenário da cultura italiana, uma obra que marcava época, uma época assinalada pela força do estilo, quer dizer, uma época neodecadente. Como marxista e, reconhece, marxista sectário, Pasolini não se interessa muito pela relação entre pecado e inocência, pela graça divina, pela observação analítica e amorosa de um mundo tomado, no dizer de Pasolini, pela metafísica - temas que lhe pareciam estéreis. Mesmo assim, gostara do filme, ao ponto de ser tocado, em vários momentos, como admite, pela emoção mais profunda. Para dizer os motivos desse empatia com o filme, concede que tinha de identificar em si mesmo os resquícios abundantes de decadentismo e, em Fellini, os pressupostos, não menos abundantes, de realismo. Anota que aquilo que importa em Fellini, e qne permanece em sua ideologia católica, é o otimismo, amoroso e envolvente. Pasolini recorda a Roma mostrada por Fellini, uma cidade árida, de uma aridez que tolhe a vida, que angustia. Pela tela desfilam personagens humilhantes, todos cínicos, mesquinhos, egoístas, viciados, presunçosos, canalhas, servis, assustados, tolos, indiferentes - mostra perfeita da pequena-burguesia italiana, delimitada por cima pelos aristocratas e, por baixo, pelo subproletariado.
No entanto... no entanto, todos essas personagens resultam, no filme, puros e vitais, mostrados num momento de energia quase sagrada. Não há no filme um só personagem triste, anota Pasolini, que suscite compaixão: todos vão muito bem, embora tuuo esteja indo muito mal. Diz nunca ter visto um filme em que todas os personagens se mostrassem tão plenas da alegria de existir, um filme no qual mesmo os fenômenos dolorosos, as tragédias, revelam-se tão carregados de vitalidade.
Para fazer um filme assim, conclui Pasolini, é preciso ter uma reserva inesgotável de amor, mesmo que seja um amor sacrílego. O neodecadente Fellini estaria tomado por esse amor indiferenciante (quer dizer, embora ele não escreva, um amor qualunquista, sinônimo de conformista). E esse amor era, no fundo, o grande responsável por um filme que não era uma obra-prima mas que continha fragmentos elevadíssimos de uma obra-prima.
Nesta crítica, Pasolini começa tomando posição contra uma tendência analítica que iria acentuar-se ao longo dos anos 60 com o estruturalismo: a crítica imanente, que se volta para o interior da obra, retirando-a de seu contexto para vê-la sob a luz de sua lógica interna. E verdade que a “nova crítica” desse momento, prima-irmã da “nouvelle vaga”, deu alguns poucos exemplos altos de interpretação — e não é menos verdade que se esgotou rapidamente, como fenômeno de moda. Pasolini em parte a pratica também, ele que foi um semiótico de primeira hora e um filólogo, como fica exemplificado pelo apontamento de traços formais significativos no filme de Fellini (as dilatações, o jogo da câmera, o “fraseado” do filme). Mas complementa-a com uma aproximação historicista, ao procurar ver como La Dolce Vita se ligava ao momento político italiano e o representava. Procedendo em seguida a um exercício de estética comparada, Pasolini busca uma referência na literatura e a encontra no romancista Gadda que, como Fellini, seria um conformista - e O Conformista seria exatamente o título de um romance de Moravia pouco depois levado às telas por um cineasta que surgia com força, Bernardo Bertolucci.. O tema do conformismo estava pairando no ar na Itália daquele instante, e Pasolini não o pesca do nada. Parte da descrição que faz do “irracionalismo místico” de Fellini poderia caber bem no existencialismo - que Pasolini sem dúvida classificaria de conformista, se o tivesse examinado - importado dos anos 50: a angústia, a recusa da racionalidade, a ausência de perspectivas, a indiferença mescladas a uma certa vitalidade, ainda que não alegre. Um certo bem-estar material ressurgente e a guerra fria que penetrava nos ossos de todos, corroendo-os por dentro (e que Pasolini não menciona) criavam um clima adequado ao conformismo.
Mas Pasolini, crítico sectário como ele mesmo diz, por não ver Fellini nitidamente de seu lado, não consegue ou não quer ver elementos perturbadores em La Dolce Vita que deixam claro o quanto da requerida crítica da sociedade estava embutida no filme, freqiientemente navegando nitidamente à sua superfície. O suicídio do amigo do jornalista representado por Mastroianni, a afetação quase demente de alguns aristocratas, a ruína emocional do pai do jornalista, o arrivismo servil do próprio jornalista são denúncias contundentes, se precisam ser assim evidenciadas, de um mundo sen rumo como qual Fellini não se compraz.
E do ponto de vista estilístico, Pasolini não percebe que o caráter “não subordinativo” do filme, que ele vê como ponto fraco do filme por não apresentar perspectivas e gradações de valor moral (em outras palavras, no filme ninguém é melhor do que ninguém, nenhum personagem simboliza um valor mais válido do que outro— ou quase) é exatamente seu ponto alto, alto porque contemporâneo. A estrutura do filme é, sim, paratática: uma coisa vem ao lado da outra (isso, na superfície, se assemelha ao filme de episódios, comum na Itália na época — mas a semelhança acaba aí), como na vida real. Mas Pasolini gostaria que Fellini tivesse feito um filme de reflexão e denúncia, que Fellini não fez — para sorte de La Dolce Vita.
Na verdade, Fellini fez sim uma escolha de valores, configurada na personagem da menina vestida de branco que fala algo, de longe, para o jornalista na praia ao lado do monstro marinho (mais um monstro, no filme) recém-capturado. Ela diz algo mas o jornalista-Mastroianni não ouve, não pode mais ouvir. Ou não quer ouvir. Fellini não arrasta o jornalista na lama, mas é evidente que há, nessa seqüência, minimalisticamente., uma perspectiva interna, uma gradação de valores.
Se tivesse analisado essa última sequência, provavelmente Pasolini teria encontrado outro bom motivo para chamar o filme de católico, pois essa é a grande cena da pureza e do pecado, da graça e da desgraça. Nem poderia deixar de haver perspectivas internas e gradações de valor se o filme é de fato católico! Este paradoxo - um filme católico sem gradação de valores-- reforça a idéia de que Pasolini era de fato, em suas críticas de cinema, sectário. Não era um cientista do filme: era um poeta e um engajado no combate social e talvez por isso mesmo suas críticas são tão pertinentes e reveladoras quanto marcadas por falácias e silêncios. E possível que La Dolce vita seja mesmo um filme católico, é possível que Fellini fosse católico como tantos outros eram na Itália e como o era também, a seu modo e numa parte não sufocada de seu ser, o próprio Pasolini. Mas daí Pasolini não pode concluir pelo “barroco simplista” do filme. Pelo contrário, o barroco de La Dolce vita é um grande barroco contemporâneo e fica-se com uma dívida para com Pasolini por ter apontado essa condição. Um grande filme barroco e uma obra-prima, não apenas uma obra com vestígios e fragmentos de obra-prima - grande o suficiente para Fellini em seguida fazer 8 1/2, mais uma obra-prima numa carreira quase sem obras secundárias.

5. Contra Eisenstein

Esta crítica, datada de 1973 (sem indicação de mês), é curta o suficiente para ser transcrita na íntegra:

“Eu sou provavelmente um dos poucos intelectuais que não gostam de Eisenstein. Sei muito bem que ele tem um grande talento e que sua figura é talvez, culturalmente, o vértice gigante do Formalismo russo. Mas considero suas obras, todas, falhadas, com exceção de Tempestade sobre o México porque não foi ele que a montou (e quem a montou o fez de modo sublimemente convencional). O Encouraçado Potemkin é um filme muito ruim, onde o conformismo com que são vistos as personagens revolucionárias é próprio da propaganda mais facciosa sem, no entanto, o gosto formal do “cartaz” publicitário (nisto, Dizga Vertov era muito bom). Os marinheiros do Potemkin são pessoas sem alma, sem corpo, sem sexo, que se movem como marionetes “positivas”. Não basta ter razão e ser herói para estar vivo. Eisenstein se liberta deste seu servilismo propagandístico apenas na famosa “sequência da escadaria”: ali explode seu formalismo (tanto no sentido histórico quanto na acepção usual do termo) e a sequência é indiscutivelmente linda. Mas é essa sequência, por isso mesmo, que revela toda a insinceridade rasteira e chantageante do resto do filme (assim como a estupenda sequência dos Cavaleiros Teutônicos destaca a filodramaticidade ridícula de todo o resto de Alexandre Nevski etc.)”

Para tratar de um tema como este e para chegar às conclusões que chegou, num momento em que há décadas Eisenstein era venerado como um dos pais do cinema moderno e valor indiscutível, Pasolini tinha apenas dois caminhos: escrever uma tese de 500 páginas, onde pudesse e provar e comprovar seu ponto, ou um parágrafo breve. Acertou na escolha. E acertou nos tópicos a abordar: o conformismo das personagens (tema constante em Pasolini, como se vê), o excesso de propaganda, a falta de “perspectivas internas” e de “gradações de valor”, para retomar os termos de sua critica contra Fellini, a ausência de vida. o excesso de insinceridade do filme.
Há no mínimo um mérito enorme neste assalto contra Eisenstein (por ele no entanto qualificado, em momento anterior, como um dos gênios do cinema): ele permite que se veja o filme não com os olhos enrijecidos dos comentários conformistas (estes sim) que moldaram mais um mito da cultura cinematográfica qne ninguém se dispõe, a discutir e do qual todos gostam sem saber bem por quê - mas com olhos libertados, olhos autorizados a exercer o próprio juízo.
O sectário Pasolini mostrou-se, com esta crítica, um revisionista de primeira hora da cultura comunista, num momento em que o império soviético ainda era um urso em pé.

Nota:
* Entre 1930 e 1931, Eisenstein filmou Que Viva México! que, para o autor, deveria ser uma obra mais grandiosa e seminal do que Intolerância, de Griffith.. Este filme, porém, nunca foi concluído conforme Eisenstein planejava e acabou sendo exibido comercialmente, numa montagem por ele desautorizada, sob o título Tempestade sobre o México, finalizada e distribuída pelo produtor Sol Lesser. Posteriormente, uma nova montagem, que reivindicava as idéias de Einsenstein, apareceu sob o título inicial.