TENDÊNCIAS DO DOCUMENTÁRIO


APRESENTAÇÃO

A Mostra Tendências do Documentário foi pensada com o intuito de acompanhar e reforçar a trilha aberta pelo “É Tudo Verdade - Festival Internacional de Documentários” que já se encontra na sua terceira edição (Cinesesc de 30 de março a 05 de abril).
O documentário, ou o cinema não-ficcional, é um gênero que está sofrendo um processo de revitalização dada sua importância como representação da realidade.
Sensível a este processo que vem ocorrendo mundialmente, o Instituto Goethe propôs a realização de uma mostra de filmes do documentarista alemão Klaus Wildenhahn e de um workshop a ser ministrado no Departamento de Cinema, Rádio e TV da ECA-USP, programação que inicia as atividades do mês de abril no CINUSP.

Maria Dora G. Mourão.

MÓDULO l - POESIA E VERDADE - Klaus Wildenhahn e Aloysio Raulino

Wildenhahn é um cineasta que quer pôr na tela o trabalho dos homens. Muito coerentemente, explica a alternância em sua obra de filmes sobre operários e sobre artistas como um esforço de observar a atividade dos homens despindo-se das auras de valor e desvalor projetadas pela hierarquia das atividades. Ele quer olhar para o homem em atividade, numa condição existencial fundamental.
Raulino é um cineasta do não-trabalho, que privilegia a contemplação dos homens em momentos dispersivos, fora da disciplina a qual se submetem para a sobrevivência.
Mas uma atitude os aproxima. Proust dizia que o fotógrafo entrega-se, em sua relação com o mundo, à melancolia, entendida como estado de abertura para o instante. Wildenhahn e Raulino são cineastas melancólicos.
Wildenhahn fala de uma observação periférica, uma quase distração, como quem olha por uma janela. Nessa atitude compartilhada, buscam romper com os sentidos óbvios (tornados óbvios pela imposição de um sentido dominante como senso comum). Ruptura com dicotomias como trabalho espiritual x trabalho manual, ou trabalho x não trabalho. Categorizações do mundo regido pelo capital, que nada têm de universal.
“Observar de perto durante, com carinho, depois seguir adiante. A introversão, esse modo de olhar como que pela janela, esse tratamento da realidade com um certo sentimento de melancolia, entendida não como debilidade, mas como fortaleza. É o que tenho sido capaz de fazer”. As palavras de Wildenhahn nos convidam a esse tipo de “educação pela pedra” do olhar.

Filmes:
Longe de Casa, de Klaus Wildenhahn (80 min)
Noite de Natal em St. Pauli, de Klaus Wildenhahn (55 min)
Tango no Exílio, de Klaus Wildenhahn (46min)
Rua 100, New York, de Aloysio Raulino e Plácido Campos (9 min)
Emden Vai aos EUA, terceiro film e; de Klaus Wildenhahn (59min)
O Tigre e a Gazela, de Aloysio Raulino (18min)
Uma mensagem para a posteridade-Um Poeta da Classe Operária, de Klaus Wildenhahn (55min)
Teremos Infância, de Aloysio Raulino (13min)
Lacrimosa, de Aloysio Raulino (12min)
Arrasta a Bandeira Colorida, de Aloysio Raulino e L.una Alkalay (11 min)
Jardim Nova Bahia, de Aloysio Raulino (14min)
Entre Três e Sete Horas da Manliã, de Klaus Wildenhahn
Porto de Santos, de Aloysio Raulino (18 min)

MÓDULO 2 - VERDADES E MENTIRAS - A Crítica da Representação Cinematográfica

Pesa sobre aos filmes não-ficcionais a ameaça da ingenuidade epistemológica. O efeito de realidade com base na gênese automática da imagem fotográfica e cinematográfica, a autoridade da imagem na sociedade de massas que a tornou onipresente, a ilusão de onisciência da voz sem corpo, versão audiovisual do discurso impessoal, fazem da pretensão à verdade uma tentação permanente da produção audiovisual, levada às últimas conseqüências, cotidianamente, pelo jornalismo televisivo.
Justamente por isso a obra de documentaristas críticos - ou seja, capazes de criticar seu próprio discurso - torna-se um momento privilegiado de reflexão. Como pensadores e artistas modernos, eles fazem dos próprios meios de expressão matéria integrante e fundamental de seu esforço expressivo. Submetem assim - muitas vezes de modo cruel e irônico - os códigos audiovisuais e a própria atividade a que se dedicam a um exame impiedoso.
Reunimos nessa sessão da mostra quatro filmes exemplares dessa tendência. A radicalidade de Welles, Bianchi e Makhmalbaf atinge diretamente nossa relação com o cinema. Não há nada de coincidência no fato de todos esses filmes se utilizarem da interpelação direta ao espectador. De modos variados, eles rompem com a ilusão de uma apresentação auto-suficiente. Documentar é um ato, uma ação de algum agente particular, que envolve e tem conseqüências sobre outras pessoas e situações, incluídos aí os espectadores.

Filmes:
Salve o Cinema, de Mohsen Makhmalbaf
F for Fake, de Orson Welles
Mato Eles?, de Sérgio Bianchi
Esta Não é Sua Vida, de Jorge Furtado

MODULO 3 - ARTISTAS E HISTÓRIA

É um lugar comum já antigo que qualquer obra de arte é uma manifestação das condições históricas em que foi produzida. Coisa muito mais complexa é pôr em evidência as relações entre o processo histórico e essa estranha atividade humana que é a arte.
Em relação à nossa época, onde a arte autonomizou-se, desvinculando-se das funções religiosas e ritualísticas e individualizando o artista, a reflexão sobre esses vínculos torna-se um campo especialmente revelador da determinação sociedade-indivíduo, em sua complexa dialética de coerção e criação, reprodução e crítica. Tal como reflexão antropológica sobre a magia exige uma consideração da totalidade social que produz o mago e seus instrumentos, a reflexão sobre o artista e suas artes implica num esforço (de esclarecimento ou de recalque) dessas relações.
Os filmes que apresentamos nesse módulo mostram que o cinema é também um dos modos de tratamento do tema, associando-se aos mais tradicionais meios das humanidades. Os artistas dos quais tratam os filmes são, eles próprios, produtores de imagem, o que coloca as obras aqui exibidas na vertente da autoreflexão sobre o meio de expressão.

Filmes:
O Cineasta da Selva, de Aurélio Michiles
Leni Riefenstahl, de Ray Muller
Crumb, de Terry Zwigoff
Socorro Nobre, de Walter Salles Jr

MÓDULO 4 - CINEMA E ANTROPOLOGIA: A Representação Cinematográfica do Outro

A interrogação e interpretação do Outro reflete-se sempre sobre aquele que interroga, no jogo de espelhos da identidade.
O documentarista com consciência crítica cognitiva e ética, sabe que seu trabalho nada tem a ver com um pretenso registro objetivo, ainda que resulte numa objetivação imagética daqueles que documenta. Trata-se de uma vontade de representação do Outro que nada tem de pura, é sempre interessada, no duplo sentido da palavra.
Por vezes o documentarista é um antropólogo e herda de sua disciplina a reflexão - tão antiga quanto a própria antropologia - em torno dessas questões. Trocando, ou complementando, o caderno de campo pela câmera, elas talvez apenas se tornem um pouco mais candentes, pela imediatidade da presença dos “informantes” nas imagens.
Para os não-antropólogos, a ausência de compromisso com os cânones da disciplina antropológica não exime do enfrentamento com as questões postas pelas representação do Outro, apenas retira o recurso a objetivos (e álibis) já anteriormente indicados. A responsabilidade ou irresponsabilidade, epistemológica e ética, não está reservada nem a uns nem a outros.
Provavelmente, o melhor a fazer é esquecer as classificações taxionômicas (isso é arte, aquilo é ciência, aquilo mais adiante é antropologia, já isso é poesia...), que têm mais relação com a burocracia acadêmica do que com a aventura de interpretação do Outro, e observar criticamente o que cada filme nos oferece e estimula como reflexão sobre quem somos nós, quem são eles, como e por que são feitas essas imagens.

Filmes:
Segredos da Mata, de Dominique Gallois e Vincent Carelli
Conversas no Maranhão, de Andréa Tonacci
Mato Eles?, de Sérgio Bianchi
Habitantes da Rua, de Cláudia Magni e Nuno Godolphin
Bárbaros, Clones e Replicantes, de Caco de Souza e Kiko Goifman
Tereza, de Caco de Souza e Kiko Goifman
Bárbara e suas amigas, de Carmem Opipari e Sylvie Timbert
Beijoqueiro, de Carlos Nader
Segredos da Mata, de Dominique Gallois e Vincent Carelli
Conversas no Maranhão, de Andréa Tonacci

Leandro Rocha Saraiva, curador.