FOTÓGRAFOS DO CINEMA BRASILEIRO: MÁRIO CARNEIRO


Conhecer Mário Carneiro é um privilégio. A idéia de um bate-papo com ele é, em primeiro lugar, uma aposta no prazer de sua companhia.
Mário Carneiro é capaz de contar a história do cinema brasileiro dos últimos quarenta anos sem o esforço de fugir do relato de sua própria experiência de vida. Esta qualidade só a possui aquele que, especializado que seja em determinada função do fazer cinematográfico, participa do processo de criação conjuntamente, bolando argumentos e roteiros com os diretores ou partindo do branco para a concepção de uma expressão pictórica de um filme. Mário Carneiro se desdobra. Fotografa, pinta, grava, monta, roteiriza, dirige. Tem formação de arquiteto e artista plástico. Assistir aos filmes nos quais participou, como Padre e a Moça, ou Porto das Caixas, é assistir ao diálogo que houve entre seus diretores e ele. Esta colaboração de pessoas quando se faz cinema, é provavelmente a idéia mais prazeirosa que pode surgir para quem quer se dedicar ao cinema. Para Mário esta colaboração se dá na forma mais cotidiana, ou seja, através da convivência, da relação de amizade. A generosidade de proporcionar no dia a dia a matéria-prima para as estórias faz parte de sua natureza.
A proposta deste evento é a observação deste aspecto do nosso cinema. Uma aposta na idéia do diálogo. A atenção sobre um personagem vital aos nossos filmes, referência direta ou indireta, consciente ou não, e sua idéia de convivência, de criação conjunta. Perseguindo a visão do fotógrafo, montador, roteirista e diretor de filmes e vídeos, o evento tem a pretensão talvez necessária de escapar aos nomes recorrentes das mostras que acontecem na cidade, geralmente privilegiando apenas diretores. E quem sabe inspirar outros eventos - os filmes de Hélio Silva, as montagens de Silvio Renoldi, as atuações de Paulo José - tantos temas quanto personagens essenciais à história de nosso cinema.

Eduardo Kishimoto e Carolina Andrade.

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Por Paulo César Saraceni

"Vivia-se na Zona Sul do Rio como se fosse Montmartre no século passado. Todos os domingos havia festa de Maria Clara Machado, que morava com seu pai, o escritor Aníbal Machado, autor de João Ternura e do conto "A Morte da Porta-estandarte", na praça Nossa Senhora da Paz. E nessas festas tinha gente de teatro, cinema, televisão, pintura, gravura, escultura, arquitetura, literatura, dança e música. Havia também jovens empresários. Nada melhor para espelhar esta formidável efervescência cultural dos fins dos anos 50.
Aluísio Magalhães deixava um pouco de lado a pintura e convocava os artistas plásticos para fazer uma "Bauhaus" no morro do Leme, na Ladeira Ary Barroso. Nesse ateliê, Aluísio e seus artistas iam mudando os gostos dos empresários. Tudo caminhava junto, unido, no desenho industrial do tempo de JK.
Foi nesse ambiente que conheci Mário Carneiro, nesse ambiente em que o MAM fazia exposições de pintura, do que havia de melhor em termos internacionais. Na Cinemateca, grandes filmes. Vinícius, Tom e João Gilberto encantavam. Até Palma de Ouro em Cannes para uma adaptação de uma peça de Vinícius, Orfeu do carnaval, de Marcel Camus, que ganhara graças à nova música brasileira. Enquanto isso, surgiu o movimento dos grupos novos de teatro de São Paulo, que faziam e encenavam peças politicamente empenhadas na realidade sócioeconômica do país.
Mário Carneiro é filho de Paulo Carneiro, cientista e embaixador do Brasil na Unesco, e de Dona Corina. Tinha uma irmã, Beatriz, a Titise, e, em 1959, morava em Copacabana. Era arquiteto, poeta, pintor, gravador, e fazia filmes em 16mm. Vi os filmes de Mário Carneiro. A boneca me impressionou muito. Havia também as tomadas de sua namorada Sará num balanço de quintal de um sítio em Itaipava. Vi logo que estava diante de um cineasta com um raro talento de iluminador e enquadramento. Mário era boêmio e bebia bem. Conversamos muito sobre o Brasil, política, arte e cinema. Mário era de família - por parte de pai e de mãe - positivista. Paulo Carneiro fundara em Paris o Museu Augusto Comte. Mais uma vez, assim como com Paulo Emílio, os brasileiros sabiam mais que os próprios franceses sobre sua vasta cultura. Combinamos fazer um filme sobre a obra de Goeldi."

Trecho do livro "Por Dentro do Cinema Novo", do cineasta Paulo César Saraceni, ed. Nova Fronteira, RJ, 1993.

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A Relação entre Diretor e Fotógrafo
Por Joaquim Pedro de Andrade

"Essa relação é muito intensa, em geral, e muito dinâmica. Muda muito com o tempo, com a própria evolução da relação entre eles, quando é o caso dessa relação entre eles dar certo durante algum tempo e haver então vários filmes feitos pela mesma dupla. Eu acho que a relação entre realizador e diretor de fotografia se conflitua na medida em que o diretor de fotografia, sendo criativo, se vê sempre sob as ordens do diretor. Ordens essas com as quais, às vezes, ele não concorda. E há naturalmente, uma certa tendência do diretor prevalecer nas decisões. O Mário Carneiro, por exemplo, é um diretor de fotografia autoral. Uma pessoa muito preparada, que fez cursos de arquitetura, foi gravador, pintor... continua sendo pintor, gravura ele atualmente faz menos... Ele escreve muito bem, também. Tem uma formação cultural e inteletual grande e começou a fazer cinema muito cedo, em 16mm, filmes de ficção que ele fazia com os amigos, sem compromissos profissionais.
A primeira vez que cruzei o Mário como diretor de fotografia, foi num filme de Paulo César Sarraceni, que dividia a direção com o próprio Mário, e se chamava Arraial do Cabo, um documentário sobre a transformação que estava acontecendo na cidadezinha de Arraial, um lugar parado onde a vida tinha parado de evoluir no sentido industrial e os hábitos da colônia de pescadores puderam se conservar. Um dia, o governo instalou lá uma grande fábrica da álcares, um produto básico para a indústria farmacêutica. Essa súbita industrialização provocou uma alteração social grande. A D. Heloísa Alberto Torres, então diretora do Museu Nacional, fez um programa meio antropológico-sociológico de acompanhar a transformação que estava ocorrendo por força daquela nova fonte de renda que os habitantes de Arraial passaram a ter. Nós propusemos, em grupo, a documentação daquilo sob forma cinematográfica, a D. Heloisa aceitou e o Museu financiou. Produzimos um filme que acabou sendo muito premiado. O Mário fazia a fotografia e ao mesmo tempo dirigia e escrevia o roteiro. O Paulo César dirigia, e eu, junto com o Sérgio Montagna, que era um outro militante do cinema naquela ocasião, fazíamos a produção nos revezando. Ali se sentia o talento do Mário e a marca pessoal dele para fazer cinema, que já vinha se revelando antes em artes plásticas, sobretudo na gravura e na pintura.
Na verdade, a escola de Mário foi uma escola típica do Cinema Novo, que tem a ver com o Neorealismo Italiano e com a Nouvelle Vague. Ele começou trabalhando com muito pouco recurso técnico, usando muito a luz natural, o que fazia com que os nossos filmes naquela época tivessem um caráter muito brasileiro, porque se tratava de captar a luz como ela era. Nós tinhamos muita pouca possibilidade de interferir, de ficar equilibrando o que estava em contra-luz, com um fundo mais iluminado etc. De maneira que se tratava de colocar a câmera, de escolher o momento. Essa escola evoluiu e rendeu muita coisa. Um dos resultados mais marcantes desses caminhos foi Vidas Secas, do Nelson Pereira dos Santos, feito com Luís Carlos & Barreto, que não tinha essa bagagem em artes plásticas, mas que era um fotógrafo de estilo, foi repórter fotográfico da revista O Cruzeiro durante muito tempo, e que começava a se interessar por cinema.
Nós tínhamos muitos conflitos naquela época com o laboratório, quando o diretor técnico se indignava ao ver o resultado do que a gente filmava. Por exemplo: você filmou com luz no fundo muito mais forte do que a do primeiro plano, tendo como resultado uma explosão, uma inundação de luz no segundo plano, que chamam de estouro de luz, a luz estourada. Essa espécie de veracidade, que a gente também procurava em outros níveis, nós estávamos tentando virar as câmeras sobre os problemas brasileiros do jeito que eles eram. Do jeito que a coisa se apresentava para nós. O Mário dividiu a autoria de Arraial do Cabo com o Paulo César, mas o filme ficou muito mais conhecido como da autoria do Paulo, talvez fosse o nome que era apresentado primeiro. E também porque o Paulo tem uma marca de diretor muito forte que se imprimiu decididamente no filme, premiado no exterior etc.
Depois, eu também fiz com o Mário um curta-metragem, que foi uma grande 'aventura física' chamado Couro de Gato. A gente subia favelas - era um filme que tratava de meninos que roubavam gatos para vender para o pessoal do morro fazer tamborim para o carnaval. Foi uma aventura física razoável, em que os gatos mordiam a gente, o pessoal baixava do Instituto Pasteur para receber injeção contra raiva, e nao tinha o menor recurso de correção das condições. Começou-se, então, a inventar, a se fazer adaptações, etc, para que esse inconveniente não ocorresse, para que a gente pudesse ter uma gravação de sons, um registro de imagens, bem ágeis: sensibilidade na película, desenvolvimento diferente da revelação, para que o filme tivesse meios de registrar uma cena que fosse mais escura.
Eu fiz lá esse curso, trabalhei até - fui assistente, filmei, fotografei - e depois voltei para o Brasil. E aqui encontrei o Luís Carlos Barreto, preparando um filme sobre o Garrincha. Ele me convidou para dirigir o filme. Tentei usar esse 'know-howsinho' que tinha aprendido lá para captar aquela realidade do Garrincha e do futebol brasileiro. Mas o equipamento de que a gente dispunha não atendia a essas necessidades. A câmera era comum, que fazia barulho, você não podia registrar o som simultaneamente, coisas assim. Além disso o Garrincha não estava mais em sua fase de esplendor, já estava começando a declinar um pouco como atleta. Assim, o resultado foi bem mais um filme de montagem. Com o equipamento que a gente tinha, com o que a gente filmou, e que não tinha aquele brilho, aquelas façanhas atléticas. Mário foi o fotógrafo do filme, mas nessas condições nós não usávamos luz artificial, filmávamos as coisas como elas aconteciam, e tínhamos várias câmeras. Essa foi uma das inovações do filme, imediatamente adotada, na semana seguinte até, pelo Carlos Niemeyer, naquele Canal 100, que era um jornal de atualidades cujo principal atrativo era o futebol. Ele usava uma câmera única em plano de conjunto.
Quando ele viu as filmagens com cinco câmeras dispostas de várias maneiras, adotou essa tática imediatamente. Passou a montar algumas cenas, como até hoje faz, evitando, em geral, a montagem que eu fiz no Garrincha e repetindo as cenas no conjunto para que os aficcionados pelo futebol possam vê-lo de vários ângulos, as jogadas inteiras, sem o corte cinematográfico ocorrendo no meio, que era uma característica do Garrincha. Mas no Garrincha todo mundo foi fotógrafo e câmera. O Luís Carlos Barreto, que aliás era muito competente para isso, eu, o David Neves e mais gente. De maneira que, nesse filme, a marca do Mário não se imprime tanto. É um filme muito mais coletivo.
Nossa relação profissional se conflituou um pouco quando fizemos O Padre e a Moça, um longa-metragem feito em preto e branco, num lugar muito distante dos centros urbanos maiores, em São Gonçalo do Rio das Pedras em Minas.
Lá nós tivemos uns azares, umas dificuldades grandes, por exemplo: durante a viagem, as lentes se desregularam de tal maneira que, quando você olhava pelo visor da câmera que era reflex, isto é, você via o que a lente estava enquadrando, através da lente é que se via o que estava em foco, mesmo se a distância medida pela trena fosse a correta. Se você medisse a distância da câmera para o objeto e colocasse aquilo no ponto que as indicações técnicas mandavam, você via o resultado fora de foco. Nós éramos tão inseguros que preferíamos acreditar nas indicações da trena. Mas, na verdade, a gente está vendo o resultado através da lente. Com isso nós tivemos 15 dias de filmagens perdidos porque demorava muito para vir o material de volta e, quando veio, estava quase todo fora de foco, apenas uma lente não tinha se desregulado durante a viagem. Nós, ali sem tempo para consertar as lentes, continuamos a filmar no olho mesmo. O que a gente via era o que funcionava. Eu me lembro que uma das discussões que eu tive com o Mário nessa fase foi que eu trabalhava muito a interpretação dos atores em determinadas cenas, e quando via o resultado eu descobria que aquele trabalho todo não se mostrava muito, a expressão fantástica que eu tinha conseguido, depois de procurar os mais variados caminhos para inventá-las junto com o ator, aparecia em contra-luz, por exemplo. Você não distinguia os traços as nuances do rosto que indicariam aquela expressão tão rica que a gente tinha conseguido.
Como foi muito difícil, eu passei anos e anos sem rever. Só fui vê-lo de novo em Roterdam, numa retrospectiva de filmes meus, quando O Padre e a Moça despertou muito interesse no público. Ali eu percebi uma coisa que conversei com o Mário: ele tinha razão. A fotografia nesse filme é memorável porque de repente ele preferia o cunjunto da imagem ao detalhe do rosto do ator. Em vez de uma opção, digamos, dramática de iluminação, ele tinha uma solução pictórica, plástica. Ele apreendia não só o pormenor reveledor humano, importante, mas sobretudo o que o envolvia, de ambiência, de jeito. Naquela época eu disse a ele: "Ô Mário, você está fazendo gravura, e nós estamos aqui fazendo cinema. Então é preciso que o rosto dos atores - porque tem movimento do rosto, tem contração... - apareça nitidamente". Depois percebi que o que ele conseguiu talvez fosse mais importante do que o que eu pretendia obter naquele momento, que era um destaque na luz do rosto, sobre o rosto do ator. De alguma maneira, a coisa se enriquecia. A informação se enriquecia com o contexto em que aquilo estava envolvido e que era realmente inédito, cheio de carga, porque nós arranjamos um lugar excepcional, porque os móveis eram incríveis, as pessoas, os vultos, os movimentos, tudo tinha uma importância muito grande.
Mais tarde, eu viria a ser produtor de um longa-metragem, a cores, que o Mario dirigiu e não fotografou (o fotógrafo foi o Pedro de Moraes). O filme se chamava Gordos e Magros, seu único em longa-metragem. O Mário, então, tanto pode trabalhar em condições adversas quanto com recursos técnicos muito maiores. Veja os filmes que ele próprio fez, que são extremamente interessantes, como o filme sobre Iberê Camargo (que foi professor dele), que tem uma luz excepcional, ao meu ver. E mais uns dois ou três que me parecem notáveis, inclusive um vídeo sobre a Lígia Clark, que tem uma imagem extraordinária, extrememente bonita, sugestiva e funcional... O Mário aceitou muito durante a vida cinematográfica essas limitações técnicas que lhe eram impostas, ao contrário de muitos fotógrafos que se recusaram a fotografar a cena quando acham que não dispõem de recursos técnicos para iluminar como acham que deve ser. Então, sobretudo por compreender a realidade econômica em que a gente fazia cinema, e faz, até hoje, freqüentemente ele aceitou ter que iluminar uma área grande sem ter luz suficiente. E pagou o preço disso profissionalmente durante longo tempo, até as pessoas perceberem que ele podia tanto tocar um solo com violão quanto reger uma orquestra completa.
O Mário tem tido uma longa colaboração com o Paulo César Saraceni. Uma relação que passou por várias fases: de conflito, de criação feliz coletiva, de divergência criativa e reencontros, como o que acontece agora, quando eles se preparam para fazer um filme do Paulo César sobre o Natal da Portela. De novo a dupla se compõe para fazer um novo filme."

Entrevista concedida à Revista Dimensões. Uma publicação do Centro de Estudos da Expressão - CETEX da Escola de Comunicações UFRJ, Ano I, N°0, 1992. Editada por David França Mendes.