NOVO CINEMA ARGENTINO


A seleção de filmes desta mostra é representativa do amplo arco de tendências - temáticas, formais, de produção - que integram o movimento renovador do cinema argentino nos últimos cinco ou seis anos. Essa renovação consiste menos num gesto de distância em relação à tradição que a precede do que de tomada de consciência de uma realidade que já não admite relatos ingênuos. Talvez seja esta a principal lucidez do conjunto numeroso e heterogêno de cineastas que se lançaram na exploração de vias alternativas para se expressar e - não menos importante já que se trata de cinema - para levar a cabo seus projetos em meio à marcha incerta da economia nacional. Se pensar a forma e a produção como parte de um mesmo problema resulta hoje num exercício comum na maior parte das cinematografias independentes, trata-se de uma questão inevitável neste caso, em que aludimos a um cinema livre, sem complexos, que as dificuldades de produção não paralisaram, mas lograram reverter numa aposta estética disposta a se afirmar como momento privilegiado na história do cinema no país. A direção deste movimento pode resultar ainda incerta; ele resiste às intenções de enquadrá-lo em contextos, categorias ou classificações, com uma vitalidade que, por ora, se faz visível sob o signo do heterogêneo: idades que abarcam duas ou talvez três gerações (entre os 22 e os 40 e poucos anos), estilos narrativos que os aproximam ou distanciam das respostas massivas do público, formas de produção que resultam sempre independentes, já que não existe uma “indústria” consolidada, mas com diferenças quanto a distintos graus de profissionalização.
Uma série de fatores conduziram, ao longo dos anos 90, nesta direção: as escolas de cinema (a maioria dos realizadores jovens passou por elas), a regulamentação da Lei do Cinema (a autonomia de fundos permitiu estender o apoio a iniciativas independentes), a multiplicação e o barateamento de equipamentos técnicos, os exemplos de vitalidade criativa de outras cinematografias do mundo conhecidas a partir da reedição de festivais internacionais, a legitimação e expansão de uma mirada mais afinada, ou cinéfila, com a proliferação de revistas especializadas. Quando se trata de fazer a historiografia do cinema independente local, há um par de títulos cuja aparição não deixa de se assinalar como gesto inaugural : Pizza, Birra y Faso (1997, dos então muito jovens Adrián Caetano e Bruno Stagnaro) e Mundo Grúa (1999, de Pablo Tapero). Ambos trouxeram à tela imagens dos excluídos, os gestos duros das periferias, com a novidade de um realismo não miserabilista. Neste sentido, cabe também a pequena mas significativa façanha fílmica cumprida por Historias Breves (1994), um amálgama de curtas metragens de jovens realizadores ganhadores de um concurso promovido pelo Instituto de Cine, cuja frescura e originalidade conquistaram, apesar de seu formato, a resposta massiva de um público em geral receoso com relação aos filmes nacionais. Aqueles curtas tornaram conhecidos os nomes de Lucrécia Martel, Ulises Rossel. Rodrigo Moreno, Andrés Tambornino, Sandra Gugliota, que lá anteciparam seus estilos obsessões criativas, que logo retomariam em suas estreias no longa-metragem, precisamente nestes filmes que foram selecionados para esta mostra (vale esclarecer que todos estes autores mencionados estão em vias de terminar seu segundo filme).

Neste conjunto de filmes pode-se detectar os sinais múltiplos e sempre móveis da renovação atual, que aproximam ou distanciam suas propostas. A princípio, o marco imprescindível da cidade, a cenografia de Buenos Aires expandida e reapropriada em seus subúrbios e zonas periféricas por outros olhares e outras gerações (Solo por Hoy e Un Dia de Suerte). Mas, com o mesmo vigor, são postos em cena lugares, paisagens e idiossincrasias do interior do país (La Ciénaga, El Descanso, Animalada, La Libertad e Fuckland). Se atrizes e atores de renome comercial integram os elencos dos filmes mais “industriais” - também em La Ciénaga, cujo tipo de produção o aproxima desta categoria - o cinema independente se povoou de rostos novos e vozes adaptadas à “língua solta" de diálogos que aludem ao tradicional tom da sentença, mas incorporam a velocidade e as inflexões da fala cotidiana. Em maior ou menor medida, em cada uma destas películas se encontram as marcas dos empréstimos e deslocamentos entre o cinema, a televisão, o teatro e a literatura, entrecruzamentos que se imprimem nas estéticas respectivas. Sérgio Bizzio, escritor e dramaturgo, imprime estes antecedentes em sua estréia no cinema com Animalada, uma aposta tão provocativa em sua temática quanto clássica em sua resolução formal. A sólida experiência na TV desenvolvida por Martel, Gugliota e Marquês permeiam de algum modo sua imaginação fílmica. Recortado numa perspectiva quase oposta, de desafio extremo a todo e qualquer convencionalismo na representação, Lisandro Alonso propõe com La Libertad um exercício que roça o metafísico através do registro do cotidiano de um lenhador solitário.

As películas estão povoadas por personagens vulgares, nada excepcionais. Sua particularidade, pelo contrário, é a semelhança com situações e casos comuns. Não há necessidade de alegorias ou metáforas (sempre disponíveis em nossa tradição fílmica, quando se tratava de transformar os nós de uma lógica a da razão - em uma possibilidade estética). A nova geração de autores tateia as formas adequadas de representar, ou melhor, de inventar mundos que se pareçam ao que os rodeia, de se aproximar da realidade sem cair na tentação mimética. Não aparece em suas ficções um drama político preciso - a História, ao contrário, se faz discreta em seus nomes, em suas instituições. Mas assoma escandalosa nas consequências, no desamparo, quando todos os indivíduos aparecem atingidos, de uma ou de outra maneira, pela deflagração desta mesma História.

Essas observações tem como objetivo delimitar uma zona precisa do cinema argentino destes tempos. Ainda que seu rumo não seja demasiado claro e ele deva avançar pela intempérie em meio às crises que colocam o país às bordas da dissolução, tanto a produção “industrial” quanto a de pequeno porte tem dado mostras de sua vocação para apostar, contra o vento e contra a maré, em seu próprio relato de resistência.

Ana Amado.