SÃO PAULO QUADRO A QUADRO


Em homenagem aos 450 anos da cidade de São Paulo, o Cinusp "Paulo Emílio" apresenta uma mostra de filmes paulistas, representativos da evolução de um cinema e que tomam a cidade de São Paulo como cenário ou tema. Toda seleção é, por gênese, falha, e esta não seria diferente.
É muito difícil - e não isento de dor - escolher, dentre todos os filmes representativos da cidade, um conjunto de pouco mais de uma dúzia para compor uma mostra. Além do que, o aniversário da cidade é uma efeméride que conclamou várias salas do circuito cultural a organizar exibições em celebração. Se, por um lado isto tornou alguns filmes indisponíveis para uma ou outra mostra dada a escassez de cópias, por outro dá ao conjunto de exibições uma certa unidade que permite uma apreciação ubíqua. E dá a mostra o tamanho de São Paulo.
A produção Cinematográfica em São Paulo se iniciou ainda nos tempos do Cinema Mudo, em um esforço modesto e irregular, mas que resultou em obras significativas, como São Paulo, Sinfonia da Metrópole (1929), de Adalberto Kemeny e Rodolfo Rex Lustig, uma versão paulista de Berlim, Sinfonia de uma cidade; e Fragmentos da Vida (1929), de José Medina.
A partir dos anos 50, preeisamente em 1949, deu-se início a uma produção significativa de longas-metragens de ficção, com a criação, por Franco Zampari, da Cia. Cinematográfica Vera Cruz, de cunho assumidamente industrial, que se opunha ao processo artesanal da produção cinematográfica de então.
A Vera Cruz tinha como principais objetivos a reestruturação da produção cinematográfica no Brasil e a criação de um pólo produtor em São Paulo, que há muito se via à margem da atividade, condensada no Rio de Janeiro, com as famosas e populares Chanchadas.
A busca por uma produção capaz de resultar num produto final compatível com a qualidade exigida pelo mercado estrangeiro era uma resposta ao cinema produzido na época (as Chanchadas) com forte apelo popular e pouco virtuosismo técnico. Essa tentativa de envernizar o produto nacional trouxe de volta ao Brasil Alberto Cavalcanti e junto com ele, técnicos e profissionais de cinema, que iriam tomar a frente desta empreitada por um cinema de qualidade e acabamento técnico profissional, e que foram, no futuro, os formadores de uma nova geração de cineastas.
Depois de uma conturbada vida útil, a Vera Cruz se viu extinguida, vendida para o Banco do Brasil. Em sua curta existência, muitos filmes foram produzidos, a maioria com uma ótima resposta de público. O Cangaceiro, Sinhá Moça, Na Senda do Crime, Sai da Frente, entre outros, todos com um enorme sucesso e prêmios em festivais. Sai da Frente ajudou a revelar o invariável talento do futuro astro do cinema caipira Amácio Mazzaropi. Inaptos para lidar com uma estrutura tão grande e complexa, o erro de seus idealizadores foi imaginar que a transferência de um esquema de produção de primeiro mundo se encaixaria sem nenhum problema em uma realidade completamente diferente como a de nosso pais.
Com o término da Vera Cruz, algumas empresas produtoras ainda subsistiram em São Paulo, como a Maristela, Multifilmes e Brasil Filmes, que ainda produziu alguns filmes importantes, entre eles Simão, 0 Caolho, do próprio Alberto Cavalcanti, que esforçava-se por emular a Vera Cruz, numa tentativa de criar um pólo paulista competitivo ao grande estúdio, mas que reafirmou o grande erro de se tentar insistir num esquema de produção e distribuição que desperdiçava dinheiro, ao invés de controlar a produção.
Com a extinção destes pólos, um novo ciclo renascia no cinema brasileiro, com suas respectivas manifestações paulistas e cariocas. Era o neo- realismo brasileiro. Filmes influenciados pelo movimento italiano que iriam ser o gérmen do cinema novo. Roberto Santos, formado pela Vera Cruz, aonde trabalhava como assistente, dirige em São Paulo, 0 Grande Momento, enquanto Nelson Pereira dos Santos filma Rio 40 Graus, no Rio de Janeiro.
O cinema moderno se desenvolve no Brasil como resposta à frustrante tentativa de se estabelecer um cinema industrial, popular, o dito "cinema de mercado".
0 Cinema Novo, movimento que se iniciou nos fins dos 50, se idealizou contrapondo-se à Vera Cruz em meio aos debates e reflexões de cineastas engajados como Alex Viany e Nelson Pereira dos Santos, ambos compromissados e influenciados pelo neo-realismo italiano. Desta tentativa de criação de uma nova estética para o cinema brasileiro, é rompido completamente o contrato de comunicação com o público. Estabelece-se que "cultura é mercado", e o Brasil se vê na urgência de novas reflexões, contemporâneas à realidade política que se apresentava. Em São Paulo, dois cineastas se destacam durante este período, Luis Sérgio Person, com São Paulo S.A. e O Caso dos Irmãos Naves e Walter Hugo Khouri, com Noite Vazia. Diferente dos cineastas do Cinema Novo, Khouri desenvolve um cinema mais intimista e pessoal, trabalhando em uma chave mais existencial os problemas da metrópole.
No final dos anos 60, desenvolve-se na chamada "boca paulistana" um cinema extremamente radical, que se contrapunha à extrema politização do cinema. O dito "cinema marginal" se extremava em seu radicalismo, negando qualquer diálogo com o público que o cinema novo ainda se comprometeu a estabelecer e que, em seu desenvolvimento e posterior decadência, se fortificou como idealização de alguns de seus contemporâneos. Nas mãos de Ozualdo Candeias, Rogério Sganzerla, Andréa Tonacci, entre outros, o cinema marginal se desenvolveu com estruturas extremamente agressivas de linguagem e tema, abordando a violência e o convívio urbano da metrópole de São Paulo. Esse cinema da "Boca do Lixo" se desenvolveu com o mesmo princípio de produção e linguagem moderna, em estruturas independentes e baratas, calcados na improvisação que acabou por formar um novo ciclo nos anos 70, de resposta a esta ruptura do cinema com o público: "o cinema da boca", indústria de fundo de quintal que será responsável pelas populares pornochanchadas.
Destas produções se destacam as obras de Carlos Reichenbach [Anjos do Arrabalde), Silvio de Abreu (Mulher-Objeto) e Arnaldo Jabor.
A partir dos anos 80s, jovens cineastas, oriundos das escolas de cinema, desenvolvem uma cinematografia urbana, cheia de referências que refletem sobre a realidade brasileira sem os usuais preceitos políticos e sociais do Cinema Novo conciliando o primor técnico com a produção barata desenvolvida nas pornochanchadas paulistas. A boa aceitação do público e o sucesso de crítica, tanto no Brasil quanto no exterior parecia ter abalado o estigma da incomunicabilidade do cinema de pretensão burguesa com o popular. André Klotzel, com Marvada Carne, Djalma Batista, com Asa Branca, um sonho brasileiro, Suzana Amaral, com A Hora da Estrela, Sérgio Toledo com Vera e uma trilogia sobre a noite de São Paulo: Cidade Oculta de Chico Botelho, Anjos da Noite de Wilson Barros e Dama do Cine Shangai de Guilherme de Almeida Prado, entre outros.
A partir dos anos 90, a política neoliberal de Collor acaba com o cinema brasileiro. Acostumado com as produções de baixíssimo orçamento, alguns diretores ainda conseguem filmar alguma coisa como Carlos Reichenbach, que filma Alma Corsária. Com a retomada, materializada por Terra Estrangeira de Walter Salles e Carlota Joaquina de Carla Camuratti, um entusiasmo contido deitou-se sobre a produção cinematográfica nacional e o medo de que este ciclo, como tantos outros anteriores, fosse logo encerrado assolou os cineastas. Entretanto, o rápido desenvolvimento do mercado, que se fortaleceu com a aceitação crescente do cinema brasileiro resultando em obras de inegável sucesso, dissipou esse receio. Ainda claudicante e dependente do governo para se manter, a retomada ganhou novo fôlego com a internacionalização de seu cinema e com a polêmica entrada da Globo Filmes - braço da Rede Globo de Televisão - na produção cinematográfica, catalisando sucessos como Carandiru e Lisbela e o Prisioneiro.
E é nesta rápida, mas considerável retrospectiva, que apresentamos filmes que circundam a cidade de São Paulo, ora a têm como cenário, ora a ela se referem. Tomados cronologicamente, possibilitam a percepção do sutil desenvolvimento de uma estética cinematográfica paulista, embasada nos conflitos entre um cinema moderno - que se desenvolveu contra todas as tentativas de implantação de um estilo mais clássico e de influência americana - e um cinema extremamente popular e barato, antenado com a realidade de produção de nosso país. 0 cinema atual parece estar perto de encontrar um meio termo entre estas duas evoluções. Resta saber se conseguirá a tempo de um novo ciclo se fechar e uma nova crise se abater.

Célio Franceschet.