NOVOS RUMOS DO DOCUMENTÁRIO BRASILEIRO?


Em fins de 2003, o 7o fórumdoc.bh - Festival do Filme Etnográfico e Documentário de Belo Horizonte - apresentou uma oportuna mostra, ora apresentada no Cinusp "Paulo Emílio", baseada na reedição atualizada do livro "Cineastas e Imagens do Povo" de Jean-Claude Bernardet. Com curadoria do autor, a mostra propunha-se a acompanhar a produção subseqüente tanto à primeira edição quanto a esta, permitindo uma reparação histórica às infortuitas coincidências que marcaram seus lançamentos.
Se na primeira edição, abordando o período de 1964 a 1983, não foi possivel incluir Cabra Marcado para Morrer de Eduardo Coutinho, filme considerado marco e divisor na história do gênero; na última, acrescidos quase vinte anos, foi O Prisioneiro da Grade de Ferro de Paulo Sacramento que não foi abordado na nova edição: ambos só foram exibidos quando já prontas as versões do livro e a única forma de reparação possível eram algumas linhas de prefácio.
Desde que O Prisioneiro... estreou em abril último no Festival É Tudo Verdade (portanto, desde a mais recente edição de Cineastas...), vários documentários adentraram as salas de cinema.
A profusão de estilos, o flerte com a ficção e a televisão e o uso de inovações tecnológicas, evidenciam melhor certas tendências tradicionais no gênero e, ao mesmo tempo, correspondem a inovações. Reunindo tais filmes sob o olhar lúcido de Bernardet e complementando a discussão desenvolvida por ele, a mostra Novos Rumos do Documentário Brasileiro? Ressalta uma realidade em constante transformação. E portanto atual.

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Novos Rumos do Documentário Brasileiro?
Questionar a produção recente de filmes documentários, para tentar perceber quais as formas novas, dramatúrgicas e narrativas, que estão despontando. Filmes como Um Passaporte Húngaro ou 33 parecem indicar tendência realmente nova, enquanto À Margem da Imagem ou Casa de Cachorro obedecem a padrão mais tradicional. No entanto, fissuras e reviravoltas nestes dois últimos filmes sugerem que tais padrões estão sendo questionados.
Em que consistiria este padrão? Destacaria dois aspectos que me parecem estruturais. Um deles é que o documentarista focaliza uma situação que chamaria de estável. Ou seja: determinar o assunto é o primeiro passo e não se prevê que ele se modifique durante a realização do filme; passa-se à pesquisa e em seguida à filmagem, absorvendo os imprevistos como incidentes ou acidentes de produção. Essa postura amplamente difundida dificulta trabalhar sobre situações em transformação, quando se pode planejar o ponto de partida mas não o que virá a seguir. Casa de Cachorro (Thiago Villas Boas) dá um bom exemplo de como a realidade pode bagunçar o planejado. O filme foi concebido como trabalho sobre situação estável: um grupo de sem teto organizado em torno de uma família mora à beira de uma avenida e fabrica casinhas para cães. Através de entrevistas e cenas mostrando condições de moradia e aspectos do trabalho, imagens e sons foram captados e o filme entrou em montagem. Tempos depois, por acaso, uma pessoa que sabia da realização do filme passa pela avenida e percebe uma intervenção da prefeitura para desalojar os fabricantes das casinhas. Imediatamente avisada, a equipe volta ao local e documenta a remoção, material da última seqüência. Assim, o filme conseguiu apreender uma situação em transformação, que altera os dados do ponto de partida.
E a percepção desses dados iniciais, captados a partir de uma concepção de estabilidade da situação, se modifica quando o espectador chega ao final da projeção. O que era visto como estável se torna precário e momentâneo, ganhando o filme em poder emotivo.
Casa de Cachorro também questiona outra vertente estrutural. O filme foi concebido a partir de um sistema de entrevistas em que as pessoas, motivadas pelos estímulos de um entrevistador, informam sobre sua vida. O tradicional. Até que um dos entrevistados inverte a corriqueira relação entre- vistador-entrevistado quando decide, ele, fazer as perguntas ao entrevistador que, pego um tanto desprevenido, responde. Outro filme que aponta para as limitações do sistema de entrevistas é À Margem da Imagem (Evaldo Mocarzel). Antes de concluir o filme, o documentarista apresentou o material gravado aos entrevistados e os entrevistou novamente, dessa vez sobre o que pensavam das entrevistas, numa espécie de meta-entrevista. Um desses entrevistados, num depoimento notável e contundente, questiona as entrevistas e declara que teria sido preferível que o filme mostrasse cenas de sua vida cotidiana.
Além de privilegiar exageradamente o nível do verbal, a hegemonia da entrevista me parece provocar algumas limitações ao trabalho do documentarista. Uma delas é que, concentrado sobre o verbal, o cineasta deixa de focalizar outros aspectos, o que pode se explicar por facilidade de produção. E de fato mais econômico produzir entrevistas do que, como gostaria o depoente de À Margem da Imagem, segui-lo na sua labuta diária de ir de casa em casa mendigar comida e engolir humilhações.
Embora João Moreira Salles tenha tentado entrevistar Nelson Freire, como este, tímido, é pouco dado à palavra, a entrevista não vingou. E percebemos neste filme a riqueza de observação (e de emoção) em cenas filmadas atenta e afetivamente, fora do mecanismo de entrevista. Basta lembrar o olhar e o sorriso de Nelson Freire ouvindo um disco de Guiomar Novaes.
O mecanismo entrevistador-entrevistado, hierarquia quebrada pela cena já aludida de Casa de Cachorro, dificulta a captação de relações entre as pessoas filmadas. Mais uma vez Nelson Freire dá um bom exemplo: as cenas em que o pianista se relaciona com sua amiga Marta Argerich são raras no atual documentário brasileiro. A relação entre eles se expressa de modo mais rico quando os vemos e os ouvimos tocarem juntos, do que se os ouvíssemos cada um falar sobre o outro.
A cena de Coso de Cachorro em que o entrevistado se torna entrevistador e aponta para outro problema das entrevistas. Quando os entrevistados são pessoas pobres, os entrevistadores tendem a estabelecer com eles uma relação reverenciai. Esse é o tema do que se convencionou chamar o "outro" no documentário. Há como que uma sacralização do pobre que bloqueia qualquer possibilidade de diálogo de pessoa a pessoa, sacralização essa que é quebrada pela linguagem dura e a atitude enérgica do entrevistado-entrevistador de Casa de Cachorro.
Uma das inúmeras qualidades de Cabra Marcado para Morrer é que a relação entre Elizabeth Teixeira e Eduardo Coutinho não é sacralizada. E isso ocorre porque o cineasta se expõe.
Colocando abertamente o seu projeto, que é diferente do projeto de Elizabeth, Coutinho consegue mostrar como estes dois projetos se articulam, quais são seus pontos de convergência, quais as suas diferenças.
Outro filme que trabalha o "outro" sem sacralização é O Prisioneiro da Grade de Ferro (Paulo Sacramento), cujo título completo é significativo: O Prisioneiro da Grade de Ferro (auto-retratos). Como isso? Auto-retratos dos realizadores? Com certeza não. Então dos presos do Carandiru.
O filme foi montado a partir de dois tipos de materiais: as imagens captadas pelo fotógrafo (Aloysio Raulino) e as captadas por presos, sem que seja sempre possível, na exibição, identificar a natureza dos materiais. Os dois tipos tendem a se fundir, mas a relação está claramente articulada quando vemos o fotógrafo orientar presos, na manipulação das câmeras digitais, ou guiar a gravação numa cela em que a equipe não pôde penetrar, ou quando ficamos sabendo que determinada seqüência foi montada apenas com material captado por presos. Passar a câmera ao "outro", à pessoa filmada, não é uma inovação na tradição documentária brasileira, pois já era este o projeto de Aloysio Raulino em Jardim Nova Bahia (1971), mais de trinta anos antes de O Prisioneiro.
A relação entre estes dois filmes sugere uma reflexão sobre as "novas tecnologias". O Prisioneiro não foi possível porque temos hoje pequenas câmeras digitais de manuseio relativamente fácil, inexistentes nos anos 70, mas porque elas foram usadas em função de um determinado projeto que, no caso, lhes preexistia.
As possibilidades expressivas e de elaboração de linguagem desses novos equipamentos não lhes são inerentes, mas dependem dos projetos para que serão usados. Ter passado a câmera aos presos explica o “auto-retratos" do título, mas não os parênteses. De fatos, se os presos puderam gerar imagens, a montagem e a sonorização final, neste filme como em Jardim Nova Bahia, permanecem sob a responsabilidade do realizador.
Outro aspecto relevante de Cabra Marcado para Morrer é que, se Coutinho tem como ponto de partida reencontrar Elizabeth Teixeira e fazer a ligação 1964-84, ele não pôde prever aonde chegaria. De fato, os resultados da busca da família dispersa de Elizabeth não eram previsíveis. Este me parece um dos movimentos mais estimulantes do documentário recente: o documentarista determina um projeto, sabe de onde parte, sabe o que gostaria de alcançar, mas não pode prever os resultados a que chegará nem o percurso que terá de cumprir. Assim a documentação tende a se tornar o registro da busca. Talvez possamos falar de um documentário que abandona a descrição, a constatação, para se tornar uma ação provocada e conduzida pelo documentarista. Neste sentido, Um Passaporte Húngaro é eloqüente. Poderia se pensar que a presença decisiva da realizadora Sandra Kogut no filme o transformasse numa espécie de diário íntimo. Não é o que acontece. Os meandros pelos quais a documentarista tem de passar, na sua tentativa de obter o passaporte almejado, descortinam amplo panorama histórico e afetivo da diáspora nos anos 30-40.
Também 33 é um documentário-ação: a busca de sua mãe biológica. Kiko Goifman constrói uma operação surpreendente. Este projeto tão íntimo (embora a adoção seja uma situação generalizada, cada adoção é vivida intimamente tanto pelos pais adotivos quanto pelos filhos adotados) passa pelo viés do "film noir", gênero codificado temática e plasticamente da indústria cinematográfica dos anos 40-50. A intimidade do realizador se revela e se mascara através de uma forma da indústria cultural, que nada tem de íntimo.
Também é de busca o filme de João Batista de Andrade, O Caso Mateucci para preparar um filme de ficção sobre um caso policial ocorrido há algumas décadas, o realizador faz uma pesquisa. Tradicionalmente, esta série composta de leitura de jornais e livros, de depoimentos gravados e posteriormente transcritos sobre papel.
O filme é o registro da pesquisa com câmera digital, seu ritmo é guiado por informações fornecidas pelos entrevistados que abrem pistas para prosseguir na investigação. 0 que costumava ser a preparação de um espetáculo torna-se aqui um espetáculo em si. Pergunta: após esse registro do processo de pesquisa, que nos informa sobre fatos e encaminha interpretações, o filme de ficção previsto continua sendo necessário?
Brasília Segundo Feldman (Vladimir Carvalho) e Ônibus 774 (José Padilha) nos colocam questões de outra ordem, mas não menos relevantes para a discussão da atualidade do cinema documentário, a saber, o uso do material de arquivo.
A reunião desses dois filmes numa mesma programação nos possibilita não apenas discutir esse tipo de filme de montagem, mas discutir a fonte desses materiais, o teor informativo e ideológico que eles carregam, e como os cineastas podem lidar com esta carga. Enquanto sobre a construção de Brasília existem horas e horas de filmes de caráter oficial, Brasília Segundo Feldman escolhe trabalhar com um material que podemos qualificar de marginal: um viajante norte-americano - e sua câmera Super-8 - totalmente desvinculado de qualquer circuito oficial. O filme de Vladimir Carvalho liga-se também, e essa não é das suas qualidades a menor, a uma tradição da cultura brasileira: a representação do Brasil pelos viajantes estrangeiros. Já Ônibus 174 trabalha com materiais que nada têm de marginais, a cobertura jornalística do seqüestro de um ônibus feita por uma poderosa cadeia de televisão. É interessante perceber como a remontagem e a contextualização do material de base modificam as suas significações: como, poderíamos dizer, passamos da reportagem ao ensaio.
Finalmente, um estranho filme: Diário de Bordo (São Paulo/9 dias em Novembro), de Paola Prestes. Com uma câmera presa no pescoço, a realizadora guia um carro e vemos o que ela vê, isto é, quase o ponto de vista da motorista, mas não exatamente. Isto já levanta uma questão interessante, já colocada nos anos 60 pela câmera na mão, mas que se torna mais insistente hoje com as pequenas câmeras digitais: a relação entre a câmera e o corpo. Quando o carro pára, nos sinais vermelhos ou por outro motivo, a realizadora pode, ou não, ativar o zoom, caso contrário o quadro não se altera. Nove dias: nove blocos, mais uma introdução. Os blocos, separados por pontas pretas, costumam começar com planos diurnos e acabar com planos noturnos, mas nem sempre. A passagem de um bloco para outro se faz com o carro em movimento, mas nem sempre. A quantidade de planos nos blocos, bem como a duração destes últimos são variáveis. O carro fica circulando pela cidade, de dia e de noite, faça sol ou chuva, não há necessária mente continuidade espacial entre os planos, nem temporal. O carro se desloca, mas não tem destino, nem percorre nenhum trajeto que pareça organizado, misturando-se grandes avenidas, centro, bairros.
Os únicos elementos fixados rigidamente são a motorista guindo o carro, a câmera que não sai do carro, o carro em movimento parando conforme os incidentes de trânsito e indo para lugar nenhum, e as pontas pretas que têm, todas, cinco segundos. De duas uma: ou o espectador aceita o contrato do filme e se deixa fascinar, ou se aborrece e sai da sala. Para mim, resulta num dos filmes mais inquietantes sobre a cidade de São Paulo: essa ausência de hierarquização do espaço, essa frouxa organização do tempo, esse deslocamento contínuo sem alvo constróem uma perturbadora sensação da cidade - são uma das facetas de nossa experiência urbana aqui, tanto faz como tanto fez, é assim, uma sensação de indiferenciação, mas fiquemos observando. E nos apegamos aos poucos elementos fixos: a câmera não sai do carro, as pontas pretas têm cinco segundos.

Jean-Claude Bernardet

Notas:
1. Texto apresentado no catálogo do VII Festival do Filme Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte.
2. Este filme não fará parte da mostra.

O autor: Jean-Claude Bernardet é professor da Universidade de São Paulo. Autor de diversos ensaios sobre cinema brasileiro, entre os quais Cineastas e Imagens do Povo (Editora Brasiliense 1985/Editora Cia. Das Letras 2003). Romancista (Aquele Rapaz), roteirista (O Caso dos Irmãos Naves de Luiz Sérgio Person, e Um Céu de Estrelas de Tata Amaral), realizador (São Paulo, Sinfonia e Cacofonia) e autor de artigos em revistas especializadas.