O DIÁLOGO DOCUMENTÁRIO E FICÇÃO


O diálogo documentário e ficção.

A Conferência Internacional do Documentário há quatro edições apresenta-se como um espaço privilegiado dentro do festival ETudo Verdade para se pensar o gênero, que vem atestando grande capacidade provocativa com filmes como Tiros em Columbine de Michael Moore e À Captura dos Friedman de Andrew Jarecki. Livres do fracasso que seus espinhosos temas podem fazer supor (o porte de armas e a pedofilia), eles conquistaram um público acima da média para o formato.
Com o tema o Documentário Hoje, a Conferência deteve-se, entre outras discussões, sobre um fenômeno poderoso no Brasil: o diálogo documentário e ficção, tema da mostra que se apresenta no Cinusp "Paulo Emílio".
Composta de ficções e documentários contemporâneos (à exceção da combinação Eles Não Usam Black-tie e ABC da Greve, ambos de Leon Hirszman), a mostra afirma-se mais que o produto de um feliz acaso e reverencia alguns filmes que, a exemplo de Cidade de Deus de Fernando Meirelles e Noticias de uma Guerra Particular de João Moreira Salles, retomam o cinema brasileiro da maneira ousada e provocativa como não se viu por bom tempo durante a última década.
O documentário ressurgiu com importância, incentivado inclusive por uma nova tecnologia digital que lhe permitiu agilidade para abordar realidades urgentes, e conquistou espaços esquecidos por uma ficção amedrontada sob palavras de ordem, tais como público ou crise e recessão. Essas ficções estéreis produziram quase nenhum público e mostraram-se incapazes de representar o país, a despeito de estratégias importadas de um parâmetro seguro: Hollywood. Gêneros narrativos e de conduta foram assimilados, mas o cinema nacional continuou genuinamente brasileiro em seus fracassos.
Preconceitos em moda alimentaram-se com atitudes individualistas de um cinema que não acreditava ser possível atingir algum público - o prestígio externo (qualidade de exportação) ou a classe média que inaugurava os multiplexes -, conquistar o outro, termo comum quando se trata do documentário. Porém, dentro desse contexto conturbado e desesperançoso, Central do Brasil de Walter Salles provoca primeiro surpresa ao atingir sucesso de público, e em seguida debate.
Para alguns, a crise referia-se ao modelo de cinematografia defendido pelo filme, sugerindo táticas entendidas pejorativamente como comerciais, sem vez para outras possibilidades.
Confrontando Central do Brasil, passados cinco anos desde sua estréia, com Carandiru de Hector Babenco, recente sucesso de público que se aproveita dessas mesmas táticas, o debate sobre modelos de representação, como nos mostrou a Conferência Internacional do Documentário, parece vdeslocar-se para outro ponto mais fundamental: a aposta no realismo, seja construção narrativa, seja resultado da gênese destes filmes, inspirados em situações reais tematizadas por documentários - o diálogo.
Central do Brasil é posterior a Socorro Nobre, do mesmo diretor, que conta a relação entre a presidiária Maria do Socorro Nobre e o artista plástico polonês Frans Krajcberg. Identificando-se com o sofrimento do escultor - família exterminada e indigência no Brasil -, Maria do Socorro decide corresponder-se com ele. As cartas que trocam viram mote para a ficção, que se inicia com a própria Maria do Socorro ditando uma carta de amor e saudades. Já Carandiru corresponde-se com 0 Prisioneiro da Grade de Ferro (auto-retratos) de Paulo Sacramento. Ambos partem de relatos privilegiados concedidos pelos detentos, respectivamente ao personagem Dráuzio Varella e a Paulo Sacramento, que incorpora essas vozes ao filme (alguns detentos participam de uma oficina de fotografia e contam com uma câmera de vídeo igual à do diretor, podendo circular com ela e documentar o que bem entenderem).
A hipótese desse diálogo amplia-se quando acrescentamos à lista outros filmes relevantes: Bicho de 7 Cabeças de Laís Bodanzky, que forma par ao questionar a necessidade dos manicômios com o documentário 0 Profeta das Cores de Leopoldo Serran (Laís afirma ter se inspirado no Profeta... de forma a reproduzir cenas no Bicho...): e dois dos melhores filmes sobre o tráfico: Cidade de Deus e Notícias de uma Guerra Particular.
Adaptação do livro homônimo de Paulo Lins, Cidade de Deus aborda três décadas (60, 70 e 80), em que o tráfico se Intensifica através da posse e destronamento de Zé Pequeno. 0 filme utliliza-se de um ponto-de-vista peculiar: a visão de dentro do personagem Buscapé, e dos moradores da favela que compuseram o elenco. Essas e outras decisões em favor de uma construção realista do tema movimentam um jogo de sete ou mais erros que força comparações entre realidade e ficção, quando a ocasião se mostra oportuna (o depoimento do personagem Mané Galinha ao Globo Repórter foi reconstruído à semelhança do registro real). 0 filme parece por vezes querer esquecer-se representação. A realidade da ficção força uma existência independente de intenções dos realizadores, e gera novos debates. Sem dúvida Lavoura Arcaica compõe com Que Teus Olhos Sejam Atendidos, ambos de Luiz Fernando Carvalho, uma dupla estranha dentro da mostra, embora com algum quê de provocação.
André é o filho revoltado que foge do pai, da casa, de um mundo tradicional e repressivo, e encontra abrigo numa pensão qualquer. Mas necessitará, para conforto dos outros familiares, empreender o retorno. Adaptação do livro homônimo de Raduan Nassar, o filme imprime lirismo e evasão contra a crueza patriarcal, e reclama assim a posição de bastardo quando comparado com os outros filmes. Todos buscam no diálogo com o documentário o instrumental necessário para o reconhecimento de um contexto social anterior à concepção do filme. Assim, cineastas e principalmente os personagens de seus filmes pretendem inserir-se nesse meio além dos limites de casa (caso de Dora, que em Central do Brasil encontra, além do garoto, o Brasil - descortinando-o), ou confrontar-se com esse meio (caso de Buscapé, que renega qualquer uma das opções oferecidas pela favela, representadas na emblemática cena inicial: de um lado, o tráfico, de outro, a Polícia). A particularidade de Lavoura Arcaica revela-se então pelo contraste: André, enquanto indivíduo, não percebe uma sociedade externa às propriedades do pai, e sofre. Não há ponto de fuga para o mundo, e André presentifica a tragédia do individualismo que restringiu quantos filmes durante a década de 90.

André Bomfim