NOS LIMITES DA REALIDADE


Nove Dimensões da Realidade

Real - A realidade cotidiana e presente das personagens do filme.
Memória - As lembranças da personagem sobre seu passado, retratadas a partir do presente da narrativa.
Imaginação - o conteúdo dos pensamentos, projeções e devaneios de uma personagem.
Delírio - O conteúdo de alucinações espontâneas ou, quimicamente induzidas das personagens.
Sonho - Aquilo com o que sonham as personagens quando adormecem ou em estado de coma.
Ficção - Histórias fictícias introduzidas à trama por meio de um livro, filme ou peça de teatro com o qual as personagens se relacionem.
Virtual - Realidades simuladas ou geradas pela tecnologia, críveis para os personagens.
Além-real - A dimensão de uma existência após a vida, na qual atuam personagens mortas. A vida após a morte, ou além.
Meta-real - A realidade que extrapola os limites do real do filme - portanto, o nosso mundo real. E evidenciada em filmes que falam sobre o processo de sua própria criação (metalinguísticos) ou que dialogam com a realidade do espectador.

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Real, Irreal e Surreal no Cinema Contemporâneo

Desde sempre, ainda antes da afirmação do critico André Bazin sobre a “vocação realista” desta arte, o cinema tem sido visto como uma técnica que retira sua razão de ser da reprodução do real.
Os sons e as imagens dos filmes imitam a maneira como nossos olhos e ouvidos percebem o mundo e, assim, oferecem-nos um outro mundo real do qual participamos como espectadores. E dessa possibilidade de apresentar-nos com aparência de realidade uma situação imaginada, encenada e reproduzida (de enganar-nos, portanto) que o cinema retira sua força.
No entanto, alguns filmes não se limitam a colocar em cena uma reprodução daquilo que chamamos de “mundo real” - o mundo objetivo, ou dos sentidos, o mundo das coisas tangíveis e visíveis. Nesses filmes, geralmente categorizados como surrealistas, expressionistas, alegóricos, fantásticos, o mundo material é apenas uma das inúmeras possíveis dimensões da realidade. São obras, portanto, em que não há apenas um real, em que “a realidade” é sempre determinada em oposição a outras: a realidade de um sonho, da imaginação ou de um delírio, a realidade de uma criação literária, a realidade virtual.
Hoje, esse tipo de abordagem se mostra mais popular do que nunca, e filmes de grande destaque trazem à tela universos que se escondem além de nossos sentidos: os mundos virtuais de Matrix e Cidade das Sombras, as alucinações quimicamente induzidas de Trainspotting e Réquiem para um Sonho, a dimensão dos mortos de O Sexto Sentido, a realidade de uma mente transtornada, estressada e insone de Clube da Luta. Mas filmes que transitam do cotidiano a outras realidades não constituem apenas um fenômeno recente. Nesse sentido, talvez nenhum outro venha a ser tão emblemático quanto foi O Mágico de Oz, em que a jovem Dorothy, levada por um furacão, depara-se com um mundo de fantasia colorido e deslumbrante, descobrindo que até então tinha vivido no universo sem cor do mundo real. Uma metáfora poderosa para a riqueza do imaginário em contraste com a objetividade da matéria.
E esse colorido mundo dos fenômenos ocultos além de nossos sentidos que o CINUSP “Paulo Emílio" pretende trazer ao seu público através da presente mostra. São dezesseis filmes produzidos entre 1993 e 2003 nos quais se combinam fatos da experiência cotidiana a outros que só podem ser compreendidos como eventos de outras dimensões do real. Cujas narrativas transitam por dois ou mais planos diferentes de representação: realidades paralelas, sonhos, delírios, situações imaginárias, filmes dentro do filme.
Se Bazin afirmava que o cinema nascera para mimetizar o mundo tal e qual o vemos e se muitos tipos de realismo prosperaram na sétima arte, por outro lado houve muitos que enxergaram no cinema uma forma de reproduzir não apenas a realidade do jeito como ela aparece aos nossos sentidos, mas também como um meio de tornar real na tela tudo aquilo que nossos sentidos não podem captar: os sonhos, a imaginação, a fantasia, o que está além do consciente, além dos sentidos e até mesmo além da vida. Meliés, ainda nos anos dez e vinte do século passado (e depois dele Bunuel, René Clair, Fellini e Alain Resnais, entre inúmeros outros) mostrou que os filmes também se prestam a tornar palpável a transição entre o mundo desperto e tudo aquilo que se esconde em nosso inconsciente. Esses mestres do cinema onírico e fantástico fizeram do cinema instrumento para a expressão de uma supra-realidade, usando os recursos da câmera não apenas para reproduzir a vida cotidiana, mas também para fundir vida e sonho, vida e pós-vida, presente e passado, percepção e alucinação. Ensinaram-nos que, no cinema, fantasmas são tão visíveis quanto pessoas vivas, delírios e sonhos têm cores e sons tão ou mais vívidos do que aqueles do dia a dia.
Na presente mostra, veremos os filmes de cineastas contemporâneos que, seguindo a lição daqueles gênios do cinema não-realista, continuam defendendo a tela branca como o espaço do sonho traduzido em imagens. Estarão presentes tanto filmes de grandes nomes do cinema onírico e fantástico dos anos 80, como David Lynch (Cidade dos Sonhos), Terry Gillian (Medo e Delírio), Tim Burton (Peixe Grande), David Cronnenberg (Spider) e Peter Greenaway (O Bebê Santo de Macon), quanto de nomes da novíssima geração dos anos 90 e 2000 que se mantém livres das amarras de um estrito realismo. É o caso, por exemplo, do neozelandês Peter Jackson, representado aqui por seu filme Almas Gêmeas, cujo estilo fantástico saiu consagrado da última cerimônia do Oscar, onde a terceira parte de O Senhor dos Anéis fizera história ao se tornar o primeiro filme de fantasia a vencer como melhor filme. É o caso também do roteirista Charlie Kaufman. Trabalhando apenas com os diretores Spike Jonze e Michael Gondry, egressos dos videoclips, Kaufman se revelou um roteirista extremamente habilidoso em fazer a transição do real para o irreal, como demonstrou em A Natureza Quase Humana e no ainda inédito The Eternal Sunshine of the Spotless Mind, dirigidos por Gondry, e em Quero Ser John Malkovich e Adaptação, de Spike Jonze. Também merece destaque o espanhol Alejandro Amenábar, de quem dois filmes serão exibidos: Os Outros e Morte ao Vivo. Mesmo fazendo um cinema de poucos recursos, sem necessidade de efeitos visuais sofisticados, Amenábar sempre coloca em cena, em contraposição ao real, outros mundos: seja o da ficção de Morte ao Vivo, o dos fantasmas de Os Outros ou o mundo virtual de imaginação e memória de Prisioneiro da Escuridão (Abre los Ojos). E ainda há espaço nesse panorama para diretores que, mesmo não tendo se destacado como realizadores de filmes fantásticos, arriscaram-se a incluir diferentes realidades em seus filmes mais recentes. É o que fizeram os consagrados Brian De Palma, no neo-noir Femme Fatale, e Ruy Guerra, em Estorvo - um raro exemplo de filme nacional que também lida explicitamente com a oposição entre real e imaginário.
Enfim, o que se oferece aqui é uma bela amostra dos inúmeros exemplos que o cinema atual tem fornecido de filmes que não limitam suas histórias a um mundo totalmente real nem a uma fantasia totalmente implausível, preferindo situar suas tramas nos limites entre um e outro extremo. Junto à sinopse de cada filme, estão indicadas as dimensões pelas quais cada filme transita. Mas isso, claro, é mero apontamento: decidir se o que cada cena de cada um desses filmes mostra é real ou não, depende da percepção e da interpretação de cada espectador.
Venha ao CINUSP “Paulo Emílio” conferir onde os cineastas contemporâneos traçam as linhas demarcatórias dos limites desse fenômeno complexo a que chamamos realidade.

Marcos Kurtinaitis.