O DOCE AMANHÃ: O CINEMA E O ADOLESCENTE


Para perder a inocência da infância e entrar no mundo adulto, uma receita: morte, sexualidade e rejeição. O roteiro não é novo, mas o cinema sempre recorre a uma visão original do mesmo tema para estimular o interesse pelo seu produto. E o cinema nunca foi tão pródigo como no momento atual em exemplos de um registro honesto, bem feito e original da juventude - mesmo que diluído em clichês inevitáveis de uma temática por demais abordada e de uma excessiva preocupação com a forma em que se constrói o discurso. Isso porque uma nova geração de realizadores, que não se formou somente pelos livros e filmes, mas também pela televisão, quadrinhos e computadores, está tomando a frente na produção audiovisual. E a despeito da eficiência dramática destes novos autores, é esta geração e seu malabarismo técnico e estético que agrada ao espectador jovem, mais íntimo desse universo cultural.
A indústria sempre tende ao lado que está lucrando, e percebendo a resposta de seu público a esta nova geração de realizadores, abriu a eles o seu quinhão de possibilidades, revitalizando um anteriormente diluído “cinema de autor”. Há muito não se ouvia da boca de adolescentes e amantes do cinema comercial tantos nomes de diretores, como Quentin Tarantino, David Fincher, Shyamalan, Robert Rodrigues, ou os realizadores do novo terror japonês. Os diretores voltaram a ser metonímias de suas obras, atitude geralmente comum apenas a cinéfilos e freqüentadores de guetos alternativos de cinema.
A seleção de O Doce Amanhã - O Cinema e o Adolescente pretende dar um panorama atual da abordagem da criança e do adolescente nos filmes, desde o cinema dos anos 80, quando realmente foram sistematizados uma série de clichês e elementos do imaginário jovem na construção de um discurso codificado para o público adulto e adolescente, até os dias atuais, com o enfraquecimento e a subversão destes signos por uma nova geração de realizadores que trazem uma nova bagagem de cultura visual e uma maneira diferente de ver e pensar o cinema. Isso tudo além daqueles que se propõem a resgatar as convenções de um gênero sobre e para o adolescente através de uma nova abordagem estética, como, por exemplo, o uso de injunções publicitárias, músicas que fazem referência a um universo pop íntimo do adolescente, grafismos e espertezas de linguagem que dão um certo verniz de “modernidade” aos filmes.
A proposta dessa seleção é, a partir deste panorama, esboçar uma reflexão sobre as semelhanças e as diferenças deste cinema, da variedade de nacionalidades e culturas, a uma hegemonia do comportamento e signos de uma cultura pop globalizada, de elementos comuns do imaginário jovem como drogas, violência, conflito com os pais, solidão, desajuste e marginalização, até o inevitável rito de passagem para a idade adulta.
A mostra não segue uma ordem cronológica de produção, mas blocos temáticos para contrapor as abordagens. Na primeira semana, a atenção é sobre a violência na visão de três diretores: o austríaco Michael Haneke, que dá uma rasteira na bagagem cultural de violência pop que temos e na pretensa imunidade que pensamos ostentar em relação a anos de cinema e televisão no seu forte Violência Gratuita; o francês Bruno Dumont, que atualiza sob o seu cinema árido uma desmistificada parábola da história de Jesus sob a ótica da violência e da falta de perspectiva de jovens desempregados, em A Vida de Jesus; e, finalmente, o tratamento realista de Gus Van Sant e o seu impecável trabalho com adolescentes na violência implícita de Elefante, Palma de Ouro em Cannes em 2003.
Meninas Malvadas, de Mark Waters e o chinês Passagem Azul, de Yee Chin-Yen, contrapõem a abordagem do gênero adolescente High School Film (o famoso cinema de escola secundária). Enquanto Meninas Malvadas satiriza os clichês do gênero sem deixar de assumi-lo, o chinês Passagem Azul aborda os conflitos do adolescente no colégio de forma terna e delicada.
Neste Mundo e Para Sempre Lilya investigam os que foram trancados do lado de fora da Europa e dos Estados Unidos, a mistura de culturas e pontos de vista e a marginalização no abismo entre os mundos dos ricos e dos pobres, através da visão de uma criança e de uma adolescente. Ainda sobre o mesmo tema, mas dentro de uma abordagem mais política, o chileno Machuca, de Andrés Wood, é contraposto a Edukators, do alemão Elans Weingartner.
Ken Park, Houve uma Vez Dois Verões, Amigas de Colégio, E Sua Mãe Também e Minha Vida em Cor de Rosa investigam a sexualidade do adolescente: do sexo aos conflitos do processo de amadurecimento e opção sexual.
Além da temática das drogas, representada principalmente por Réquiem Para um Sonho através do virtuosismo estético do diretor americano Darren Aronofsky, do desajuste e da solidão, com os chineses Plataforma, Dezessete Anos e o cult americano Estranhos no Paraíso, de Jim Jamursch, e de outros temas comuns ao universo adolescente, abordados com uma certa preocupação por uns, com interesse analitico por outros, num tom delicado e concessivo algumas vezes, num tratamento pesado e que “dá as costas” para o espectador noutras.
Essa similitude e cumplicidade entre realizador e espectador, a partir de uma sintonia de referências de uma nova geração de realizadores e espectadores, começa a diluir os conceitos e limites bem demarcados de uma dita oposição cinema de autor X cinema comercial. A indústria começa a abrir concessões para nomes de peso do cinema mundial enquanto o preconceito do realizador em relação a um aludido cinema castrador dos grandes estúdios começa a perder o sentido. O que parece se esboçar e talvez esta seleção de filmes permita brevemente vislumbrar é a possibilidade, salvo as devidas exceções, de um cinema menos setorizado, em que arte e indústria se confundem e a primeira e maior preocupação é o espectador.

Célio Franceschet.