O CANGAÇO NO CINEMA
Sessenta filmes brasileiros tiveram o cangaço como tema principal, secundário ou citação. Cangaceiros, com seus vistosos adereços e indumentárias, aparecem em documentários (como Memória do Cangaço, A Musa do Cangaço, A Mulher no Cangaço), em filmes de aventura (os nordestern que tem O Cangaceiro de Lima Barreto, como paradigma), em épicos ou alegóricos (Deus e o Diabo na Terra do Sol, O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, Porta de Fogo) e, também, em paródias/sátiras/comédias (Os Três Cangaceiros, Pedro Bó, o Caçador de Cangaceiros, Deu a Louca no Cangaço, O Lamparina, Kung Fu Contra as Bonecas) e até pornochanchadas (Cangaceiras Eróticas, A Ilha das Cangaceiras Virgens).
Na mostra O Cangaço no Cinema, o Cinusp Paulo Emílio apresenta 14 títulos, sendo sete longas-metragens (que vão de Lima Barreto, passando por Glauber, até Lírio Ferreira e Paulo Caldas), três médias-metragens (Memória do Cangaço, O Último Dia de Lampião e A Mulher no Cangaço) e quatro curtas (A Musa do Cangaço e Vitalino Lampião, ambos documentários, e o ficcional Porta de Fogo do inquieto Edgard Navarro). Navarro, além de diretor, aparece no filme como ator, encarnado nas poucas carnes do capitão Lamarca, que, no sertão da Bahia, encontra-se num momento de transe - com o capitão Virgulino Ferreira, vulgo Lampião.
Glauber Rocha mostrou em seu livro Revisão Crítica do Cinema Brasileiro (Civilização Brasileira, 1963) espanto frente ao tardio interesse de nossos produtores e realizadores pelo tema do cangaço.
“É verdadeiramente inexplicável”, escreveu, “o fato do cinema brasileiro chegar à temática do cangaço apenas em 1953, quando a literatura, através de autores como Franklin Távora ou José Lins do Rego, já formara um ciclo: o cangaceiro, personagem indispensável no romanceiro popular do Nordeste, passara ao romance nordestino com todo seu complexo mistico e anárquipo”.
O cineasta baiano, que faria dos cangaceiros Corisco e Coirana personagens de Deus e o Diabo na Terra do Sol (o primeiro) e O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (o segundo) tinha razão. Até o estouro nacional e internacional de O Cangaceiro (Lima Barreto, 1953), as aventuras do cinema brasileiro no universo do cangaço foram mesmo reduzidas.
Na fase muda, Tancredo Seabra (Filho Sem Mãe, 1925), Jota Soares (Sangue de Irmão, 1926) e Guilherme Gáudio (Lampião, a Fera do Nordeste, 1930) tentaram trabalhar, no calor da hora, o tema dos bandoleiros que atormentavam o Nordeste. Lampião - vale lembrar - ingressara no cangaço em 1922. Estava, portanto, em plena atividade quando Seabra, Soares e Gáudio deitaram olhos em suas ações e combates. Ele só morreria na Grota de Angico (ao lado de Maria Bonita, Enedina e mais oito cangaceiros) em 1938. Dois anos depois, morria Corisco. E o ciclo do cangaço chegava ao fim.
Como nenhum destes filmes da fase muda alcançou a posteridade (se foram concluídos, deles não restaram cópias), sobrou - com toda justiça - para o mascate-aventureiro libanês, Benjamin Abrahão (assassinado dois meses antes de Lampião), a glória de ter feito o primeiro filme com cangaceiros: Lampeão (ou Lampião, o Rei do Cangaço).
Muita controvérsia cerca o mítico filme que Benjamin realizou para a produtora cearense Aba Filmes, em 1936. Não se sabe, com certeza, quantos minutos (ou horas) o mascate documentou. O que se sabe é que, depois de interditado pelo Governo Vargas, o filme caiu em desgraça e ficou “guardado” por muitos anos. Até reaparecer, em 1965, no média-metragem Memória do Cangaço, de Paulo Gil Soares (depois transformado em um dos episódios do longa Brasil Verdade, produção de Thomaz Farkas).
Hoje sabemos que pelo menos seis ou sete minutos (em película 35 milímetros) restaram das andanças e filmagens do mascate-cineasta pelo sertão nordestino. A saga de Benjamin transformou-se, inclusive, em tema do longa ficcional Baile Perfumado (1997). Neste filme, Lírio Ferreira e Paulo Caldas realizam espécie de “making of póstumo" da aventura do libanês que filmou Lampião, Maria Bonita e bando.
Lampeão chegou a nossos dias como um documentário seminal, de trajetória tragicamente acidentada. Mas o que fica - e nos importa - é que as imagens colhidas por Benjamin Abrahão (que contou com valiosa ajuda de “cinegrafistas-cangaceiros”, pois aparece em carne e osso em muitas delas) foram capazes de fertilizar o imaginário de realizadores como Glauber Rocha, Paulo Gil Soares, Eduardo Coutinho, Maurice Capovilla, Geraldo Sarno, Hermano Penna, José Umberto, Edgard Navarro, Rosemberg Cariry, Lírio Ferreira e Paulo Caldas.
Depois do imenso sucesso de Lima Barreto e seu O Cangaceiro, filme premiado em Cannes e nossa primeira ficção nordestern (*) - filmes de aventura, em tudo assemelhados ao western americano, nos quais cangaceiros e volantes se antagonizavam - o cinema brasileiro viveu verdadeira febre de filmes de cangaço. A maioria seguindo o paradigma estabelecido por Lima Barreto. Sete típicos nordestern foram estudados com grande acuidade por Lucila Ribeiro Bernardet (1935-1993) e Francisco Ramalho Jr. no ensaio Cangaço - Da Vontade de se Sentir Enquadrado, produzido na USP, em 1966 (e agora editado no livro Cangaço, o Nordestern no Cinema Brasileiro, Editora Avathar, 2005).
Lucila e Ramalho mergulharam nas estruturas narrativas recorrentes em O Cangaceiro, A Lei do Sertão, A Morte Comanda o Cangaço, Três Cabras de Lampião, O Cabeleira, Lampião, o Rei do Cangaço, e Entre o Amor e o Cangaço, para concluir - como registrou o pesquisador Carlos Alberto Mattos (no site criticos.com. br) - que “no auge do culto ao subgênero, os autores explicavam a efetiva ausência do cangaceiro num ciclo nominalmente dedicado a ele", pois “os filmes faziam, na verdade, uma forma ambígua de condenação do cangaço, tratando geralmente de um herói em conflito que resolvia deixar o cangaço e fazer as pazes com as instituições. A história, portanto, era de como não ser cangaceiro”.
Depois da febre do nordestern que lotou cinemas nos anos 60 - e da qual devem ser excluídos os filmes de Glauber Rocha, pois o cineasta não estava interessado em refregas entre cangaceiros e volantes - surgiram filmes esparsos (e pouco conhecidos) como Quelé do Pajeú, de Anselmo Duarte, A Vingança dos Doze, de Marcos Farias, Faustão, de Eduardo Coutinho, e Jesuino Brilhante, o Cangaceiro, de William Cobbett.
Em meados dos anos 70, dois documentários de excepcionais qualidades - O Último Dia de Lampião de Maurice Capovilla e A Mulher no Cangaço de Hermano Penna - atingiram milhões de espectadores no horário nobre da Rede Globo (no então vigoroso Globo Repórter). Ainda hoje, estes filmes, de pouco mais de 50 minutos cada um, mostram-se modernos e reveladores.
Um depoimento, no filme de Hermano, nos fascina ao revelar que muito do apelo do cangaço (principalmente junto às mulheres) estava na “liberdade” que ele prometia/trazia. A cangaceira Adília (mulher de Canário) relembra idéia corrente no seio de sua família (pequenos lavradores nordestinos): se mulher aprendesse a escrever, usaria tal instrumento para “mandar cartas para o namorado”.
Em 1976, trinta e seis anos depois do fim do cangaço, já com o rosto sertanejo marcado pelo tempo, Adília encanta qualquer feminista contemporânea ao enunciar a segunda parte de seu testemunho: “Meu pai não deixava eu me pintar, dançar de jeito algum. Depois que eu saí [ou seja, depois que entrou no cangaço], dançava, penteava meu cabelo do jeito que eu queria, me pintava da melhor forma que eu queria, que ele não me empatava. Pintava as unhas, os beiços, aqui o rosto [mostra as bochechas], era toda pintadinha”.
O filme de Hermano fala de gravidez, aborto e maternidade. Em especial do momento em que as cangaceiras eram obrigadas a entregar os filhos a parentes ou coiteiros, por ser impossível carregar bebês nas caatingas e sertões secos (em busca de esconderijos, os bandoleiros passavam dias sem água e alimentos) e - principalmente - em meio a frequentes combates com volantes.
As mulheres procuravam libertar-se do jugo paterno ao lado daqueles homens viris, guerreiros, cabeludos, vaidosos e ousados. Estes, por sua vez, fugiam do trabalho miseravelmente remunerado pelo latifundiário e tornavam-se patrões de si mesmo.
O cangaço - iniciado no século XIX com Lucas da Feira, Jesuino Brilhante e Antônio Silvino - acabou com a chegada das estradas e do progresso ao sertão. E também com o medo difundido pelas cidades nordestinas que receberam a macabra “visita” das onze cabeças cortadas de Lampião, Maria Bonita, Enedina e oito cangaceiros. Decepadas ainda na Grota de Angico (Sergipe), elas chegaram à escadaria da Prefeitura de Piranhas (Alagoas), onde foram expostas numa espécie de altar macabro, enfeitado com cartucheiras, fuzis, embornais bordados, chapéus estrelados e até com máquinas de costura. Depois, seguiram de município em município, numa cruzada exemplar, até encontrar abrigo no Museu Nina Rodrigues. Lá permaneceriam até 1969, quando seriam enterradas.
Tudo leva a crer que o baiano Glauber Rocha (1939-1981) tirou deste macabro altar, o título de Cabezas Cortadas, filme que realizaria - em 1970 - na Espanha.
(*) O neologismo Nordestern é uma criação do pesquisador potiguar-carioca, Salvyano Cavalcanti de Paiva (1923 -2000). Há quem o atribua, também, ao crítico baiano-carioca, Antônio Moniz Viana. Consultado, Moniz afirma não se lembrar de ter cunhado o termo. “Posso ter criado, como posso não ter criado, esta expressão. Eu escrevia tanto, mas tanto, no Correio da Manhã, nos anos 60, quando o gênero virou febre, que não me recordo, mesmo!”. Glauber Rocha não tinha dúvida quanto à paternidade do termo. Em Revisão Critica do Cinema Brasileiro (Civilização Brasileira, 1963), ele escreve: “Se o tema da aventura esteve presente na obra de Humberto Mauro e em outras experiências do antigo cinema brasileiro, sua definição como gênero de cangaço, hoje habilmente batizado por Salvyano Cavalcanti de Paiva como nordestern, apareceria somente em 1953, no polêmico filme de Lima Barreto.
Maria do Rosário Caetano.