IMIGRAÇÃO: EUROPA


"Sou nativa de Glasgow, paquistanesa, adolescente e mulher, uma mulher de ascendência muçulmana e que torce pelos Glasgow Rangers numa escola católica”

A frase da jovem Tahara no filme Apenas um Beijo reflete a complexidade de uma geração de jovens existente no atual contexto social europeu. São imigrantes de segunda ou terceira geração, nascidos no continente, mas que trazem na pele as marcas da origem estrangeira de seus pais, sem, no entanto, se identificarem com suas rigorosas tradições familiares e religiosas. São jovens que cresceram numa sociedade mais aberta e que permite maiores liberdades às mulheres, por exemplo, mas na qual não conseguem inserir-se plenamente, pois ora são impedidos pelo conservadorismo da família, ora pela própria sociedade que não os enxerga como cidadãos europeus. São esses jovens o principal tema da mostra “Imigração: Europa”, que o CINUSP “Paulo Emílio" apresenta no mês de outubro.
Essa geração é descendente direta de um fluxo migratório anterior, intensificado especialmente na segunda metade do século XX, nas décadas seguintes à Segunda Grande Guerra. Nessa época havia uma grande demanda por trabalhadores braçais, que atraiu especialmente grupos de turcos para a Alemanha, indianos e paquistaneses para o Reino Unido, marroquinos e argelinos para a França. A Argélia, então uma colônia francesa, viveu um violento processo de independência, que opôs grupos étnicos dentro do próprio país. Após uma sangrenta batalha, a colônia libertou-se da França, mas muitos argelinos buscaram refúgio na antiga metrópole, sem encontrar, no entanto, nenhuma iniciativa pública de inclusão à sociedade francesa, impelindo-os à marginalidade.
A constante negligência do setor público com essa classe nas últimas décadas foi um dos causadores da série de revoltas ocorridas em outubro do ano passado nas periferias francesas, os chamados banlieues. Era um grito que provinha dos jovens filhos de imigrantes, franceses natos, insatisfeitos com a precariedade de suas condições de vida, a inacessibilidade a um ensino público de qualidade, e a carência de emprego. Como fator agravante, esses jovens são vítimas de movimentos xenófobos, de setores que associam os altos índices de desemprego à presença dos imigrantes na Europa.
Por outro lado, por conta desse passado desastroso na questão da Argélia, sobrevive na França uma espécie de culpa colonizadora, vista na personagem de Daniel Auteuil em Caché. Mas a tensão vivida pela família do filme talvez esteja menos relacionada com essa culpa; no atual contexto político-social europeu, esse sentimento evoluiu para um estado de medo paranóico, que atinge a classe média desde que as explosões a bomba nos trens de Madrid evidenciaram que a Europa também era um alvo de ataques terroristas. Como conseqüência, a família do filme teme o seu entorno e se fecha a ele. Nas palavras da atriz Juliette Binoche, “o cinema é como um espelho de nossas tensões coletivas e individuais (...) e o filme acerta a chave do problema: nossa incapacidade de relacionar o presente com as questões do passado”.
Esse complexo panorama traçado pelo filme provém do olhar de um grande e premiado diretor europeu, Michael Haneke. Em conjunto com os filmes de Stephen Frears, Ken Loach e Michael Winterbottom, forma-se aqui um primeiro olhar cinematográfico sobre a questão, no qual imigração, xenofobia, religião e sociedade entrelaçam-se em narrativas complexas e maduras. Em Apenas um Beijo, o diretor Ken Loach, famoso por seus dramas político-sociais, cria uma história de amor entre uma católica e um muçulmano, problematizando a questão da imigração dentro de um já conflituoso contexto do Reino Unido.
No entanto, existe um fenômeno ainda muito recente em curso na cinematografia européia. Abdelattif Kechiche, Ismael Ferroukhl e Fatih Akin, são jovens realizadores cuja origem étnica está visível em seus próprios nomes. Eles representam uma nova e emergente geração de cineastas cuja obra já chama a atenção desde seus primeiros trabalhos, dado o vigor na abordagem de um tema que lhes é tão próprio. Como parte dessa segunda geração de imigrantes, incluem em seus filmes personagens que carregam um forte sentimento de deslocamento, que buscam simultaneamente inserção na sociedade européia e um ponto de equilíbrio dentro de suas famílias, das quais esperam mais tolerância e liberdade.
Esse conflito das gerações fica evidente especialmente em A Grande Viagem em que o jovem Reda é obrigado a acompanhar o pai em sua peregrinação a Meca. A distância existente entre os dois concretiza-se nos diálogos, em que o filho só fala em francês e o pai só se dirige a ele em árabe. Sem se identificar com a religião do pai, o jovem o acompanha contra sua vontade numa viagem que o leva a refletir sobre sua condição étnica, religiosa e suas origens. O tema da viagem de volta está presente ainda em Contra a Parede e Exílios. Contudo, o retorno à terra dos pais, Turquia e Argélia, respectivamente, é aqui uma iniciativa dos próprios jovens, que, frustrados com suas vidas aparentemente à deriva, saem em busca de um auto-conhecimento que deve passar necessariamente por suas origens.
Como contraponto a essas viagens de volta, nossa seleção de filmes será aberta em sua primeira semana pelos filmes Neste Mundo e A Culpa da Voltaire, que fazem exatamente o caminho inverso, apontando seus rumos para a Europa, ainda vista por quem está de fora como uma terra de oportunidades. A metáfora da viagem, de ida ou de volta, resume bem a condição desses jovens, que estão em constante movimento, à procura de um lugar onde se encaixar. A par da questão do olhar cinematográfico, esperamos que essa mostra forneça material de reflexão para os espectadores sobre um assunto de tamanha atualidade e importância no cenário mundial.

Victor A. Biagioni.