CINEMA E PSICANÁLISE - AMÉRICA LATINA: DIVERSIDADE E SEMELHANÇA


Seria possível, a partir da produção cinematográfica contemporânea, encontrar um denominador comum para a identidade da América Latina? O próprio conceito de identidade latino-americana já fora muito utilizado na história do continente; diversas vezes, porém, somente para servir a ideologias em voga. É um conceito, portanto, muito passível de acabar atrelado às necessidades mais imediatas do contexto politico-cultural que o gerou.
Se hoje presenciamos a emergência de novos tipos de projetos nacional-populistas que estabelecem parâmetros específicos do que deve ser a identidade latino-americana, ou mesmo a permanência de certos estereótipos sobre a cultura da América Latina que apenas reproduzem lugares-comuns quando se fala sobre a sua identidade, torna-se fundamental pensarmos para além dessas limitações, conjugando identidade e diversidade, particular e universal, de uma maneira ampla. Busca-se assim, manifestações em que se possam relacionar os filmes entre si.
Um traço característico da produção contemporânea e que podemos tomar como ponto de partida para pensarmos a relação entre cinema e psicanálise, é a noção de singularidade nos personagens. Se antes, em um contexto que marcou profundamente o cinema latino-americano nos anos 60/70, que foi o Nuevo Cine, a noção de síntese era o que animava a dramaturgia dos filmes, quer dizer, a capacidade de um personagem em significar um grupo, uma classe ou uma época, hoje importa mais aos cineastas pensar personagens que sejam singulares, cujas questões ou dramas signifiquem justamente pela maneira particular com que interagem com o mundo. É claro que isso não exclui que o cinema contemporâneo discuta aspectos gerais da realidade que nos cerca, mas essa relação se dá de outra forma, priorizando a dimensão do particular na lógica dramatúrgica.
Essa ênfase em construir personagens fundados em uma lógica particular permite que se trabalhem questões relativas à subjetividade dos mesmos de maneira mais profunda e os conflitos, vistos através dessa perspectiva individual, por vezes se configuram numa oposição eu X mundo. O mundo, agora também tão particular quanto os personagens, adquire uma determinação no espaço e no tempo, o que torna o "deslocamento" uma grande constante no cinema contemporâneo.
Durante a Mostra poderão ser vistos filmes de vários países latino-americanos onde o tema do deslocamento está presente. Tomemos como exemplo os títulos brasileiros: Cinema Aspirinas e Urubus, O Céu de Suely, O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, Serras da Desordem e Benjamim. Os filmes expressam, de modos distintos, esse processo de formação do personagem em meio a desejos e necessidades de deslocamento entre lugares, e também entre ser Um ou Outro.
Assim, é possível aproveitarmos essa tendência contemporânea na dramaturgia do cinema latino-americano para pensarmos a formação da subjetividade, ligada a processos de deslocamento dos personagens, numa relação de corpo a corpo com o espaço. Um denominador possível da diversidade latino-americana se dá nesse deslocar periférico, atualizando, assim, a própria idéia de migração, que não ocorre mais apenas pela lógica econômica, mas motivada por questões afetivas, políticas e existenciais.
Por exemplo, no início do filme, Hermila, a protagonista de O Céu de Suely, refaz pela contramão o percurso dos primeiros migrantes nordestinos que deixaram sua terra em direção ao sul. E, entretanto, se no final da narrativa Hermila volta a migrar para o sul, é mais como necessidade subjetiva em continuar o deslocamento e, portanto, por questões mais existenciais e afetivas, do que por razões econômicas imediatas.
Mesmo se utilizarmos como exemplo o enredo de Cinema, Aspirinas e Urubus, que se passa na década de 40 e, portanto, contemporâneo às primeiras migrações nordestinas, as motivações do personagem migrante, Ranulpho, adquirem contornos que acentuam mais um lado existencial, dando certa indicação que esse olhar contemporâneo projeta-se também sobre o passado.
Este deslocar supõe a relação Eu-Outro, assim como o arquétipo da viagem na constituição do herói, e a persistente condição de estrangeiro, tão cara ao existencialismo. É neste desdobramento nuclear e especular do nascimento do Eu que estes filmes encontram seus temas e onde a psicanálise e o cinema se encontram.
Para muitos destes filmes, a relação do dispositivo fílmico com o aparelho psíquico é muito mais que uma relação trabalhada através da construção de personagens. Para alguns realizadores, o processo fílmico, enquanto processo criativo, se desenvolve a partir da elaboração da própria consciência histórica, fazendo do trabalho de realização audiovisual uma nova técnica do Eu. Vale dizer, o cinema como modo de pensar sobre si mesmo, sua geração, seu lugar na história.
Na linha desta estética do particular, a mostração do tempo também está aderida a um presente cênico, já sem síntese nem grandes elipses. Há um olhar sobre o passado, mas não é um passado remoto e, sim, um passado reconstruído desde o presente do personagem.
O olhar sobre o passado político é também o eixo central das novas narrativas sobre a ditadura. Cabe lembrar que as experiências totalitárias dos anos 60/70 são uma herança comum à maioria dos países latino-americanos, legando-nos uma memória cujo trauma é constantemente repassado pelo cinema.
Comentamos aqui, alguns exemplos de um possível recorte do cinema contemporâneo produzido na América Latina que discute aspectos comuns na diversidade cultural desse continente. Tais idéias são colocadas não para estabelecermos ideologias esquemáticas, mas para que possamos, na complexidade das subjetividades construídas, refletir sobre o mundo contemporâneo e sobre como se organiza, em particular, nesta parte do globo.
Durante os debates, e dentro dessa perspectiva, pensaremos o que permite que, ao assistirmos um filme, para além das determinantes econômicas do fazer cinematográfico, possamos imediatamente identificá-lo como europeu, norte-americano ou latino-americano.

Lucas Keese, Mana Dora Mourão, Leopold Nosek e Andréa Molfetta.