VISÕES DO DIVINO
Há dois mil e sete anos atrás nasceu Jesus Cristo, que ao longo de sua vida pregou valores, disseminando o que hoje denominamos Moral Cristã. Esta assumiu ao longo da história inúmeros significados, alguns mais reflexivos, outros mais humanistas e alguns inclusive de cunho mais politizado. No entanto, o que nos é apresentado geralmente são valores cristãos já prontos, inquestionáveis, cristalizados. Aceitamos ou negamos as visões da igreja sem pensarmos em outras possíveis interpretações, ou ainda, sem nem mesmo perceber que são interpretações. Ignoramos também que a Moral Cristã extrapola os limites religiosos fazendo parte de um escopo social maior. Ela está diretamente ligada aos valores ocidentais influindo na construção de uma ética para a convivência entre os indivíduos. Não se tratam apenas de crenças religiosas, mas sim de valores que se esparramam na teia social, que infiltram as relações humanas.
Para Nietzsche, por exemplo, nem mesmo a ciência teria escapado à interferência da Moral Cristã. E comum a idéia, hoje, de que a ciência desempenhou ao longo da história um papel de ruptura com as crenças religiosas, as explicações científicas dos fenômenos viriam para substituir as crenças religiosas. Oswaldo Giacóia Junior, em seu livro “Labirintos da Alma - Nietzsche e a Auto-supressão da Moral”, coloca: “A despeito da rumorosa hostilidade entre Fé e Saber e da oposição feita pelas ciências ao dogmatismo religioso, são os valores morais do Cristianismo que sobrevivem nas ciências modernas. Tendo em vista que uma vontade incondicional de verdade constitui um pressuposto fundamental da ciência, esta se revela como sucessora e caudatária da virtude cristã par excellence: a veracidade.”
O cinema, enquanto arte que dialoga e discute a realidade e sua moral, desenvolveu um panorama vasto e interessante de obras que tratam, reinterpretam e questionam de maneira criativa, polêmica e até mesmo divertida os significados dados ao conjunto de valores cristãos e a maneira como estes se inserem socialmente. E com o objetivo de fazer jus à pluralidade de manifestações do fenômeno cristão que o CINUSP “Paulo Emílio” propõe, para este mês de Dezembro, a Mostra “Visões do Divino”, com uma seleção de filmes que abordam as mais diferentes facetas do tema.
Em Je Vous Salue Marie (1985) de Godard a estrela dos Reis Magos é substituída pela bandeirinha de uma ambulância, Maria é filha de um frentista membro de um time de basquete, José é motorista de táxi e o anjo Gabriel é um homem comum que anda de avião e que possui uma companheira. Godard também rompe com a imagem tradicionalmente passiva de Maria. Ela tem consciência e desejos de mulher e a castidade é algo com o qual ela lida com dificuldade. A problemática da mensagem cristã é recolocada no mundo de hoje, usando o recurso de repetidos intertítulos ao longo do filme com a expressão “Naquele Tempo”, o diretor atualiza e confere perenidade à mensagem milenar.
Em A Última Tentação de Cristo (1988), de Martin Scorsese, Jesus Cristo não é o messias com predestinação divina e com absoluta certeza de sua missão na Terra que estamos acostumados a ver. Em seu lugar, somos apresentados a um homem que possui momentos de elevado orgulho próprio, inclusive se gabando de sua condição de predestinado.
Nessas duas obras, tanto Maria quanto Jesus são personagens com muitas dúvidas, incertos com relação aos propósitos de Deus. Ambos transparecem suas fraquezas, sendo exemplos que jogam com a dubiedade entre a crença divina e o elemento humano de criatividade na formulação de valores.
Além de reinterpretar os significados centrais dos ícones cristãos, o cinema também trabalhou com os mais diferentes contextos históricos. Vemos, então, desde uma jovem chamada Joana D’arc, que no século XV é condenada por heresia à fogueira pela inflexibilidade da Igreja frente à ameaça que ela representava a seus interesses, tema da obra-prima A Paixão de Joana D’Arc (1928) de Carl Theodor Dreyer, até os conflitos atuais apresentados pelo filme C.R.A.Z.Y - Loucos de Amor (2005), em que um filho passa pela descoberta de sua homossexualidade e enfrenta problemas com a religiosidade da mãe. Com essas tão diferentes situações, a proposta é mostrar um espectro amplo de obras e assuntos que remetam à Moral Cristã, com o intento de suscitar conexões originais e maneiras novas e elucidativas de refletir sobre o significado social desses valores religiosos.
Refletir sobre a Moral Cristã é também refletir sobre as condições das esferas da cultura, da ciência, da arte e da política. O CINUSP “Paulo Emílio” espera que, com a Mostra Visões do Divino, fechemos a programação do ano com uma proposta insti- gante e elaborada. Deseja assim, a todos, um Feliz Natal e ótimas reflexões.
Ricardo Monastier e Rúbia Rebeca Neri.