MARCAS DA VIOLÊNCIA


“Ora, é preciso desconfiar de uma definição geral da violência; levar em conta que há situações contrastantes de exposição à violência nas sociedades modernas...”, Danilo Martucelli.

A frase do professor de sociologia da Universidade de Lille atenta para como a questão da violência tem sido tratada de forma simplista, eliminando-se o contexto em que se dá, e ignorando as maneiras múltiplas pelas quais ela se apresentou ao longo da história. O impulso para uma mostra de filmes sobre a violência, tema exaustivamente tratado pela mídia, vem justamente da necessidade de quebrar a obviedade da abordagem sensacionalista e banal e criar um panorama mais completo desse fenômeno, atentando tanto para maneiras mais sutis, sem, no entanto, ignorar as formas mais brutais e explícitas.
No documentário brasileiro Ônibus 174 de José Padilha, sobre o sequestro de um ônibus no Rio de Janeiro coberto na íntegra pela mídia, fica clara essa problematização que o cinema pode dar ao tema. Houve obviamente uma forte influência do setor midiático no próprio desenrolar do acontecimento. Na opinião da professora da ECA/USP, Esther Hamburger, as câmeras televisivas chegaram a desempenhar um papel perverso na forma como conduziram a abordagem dos fatos. O documentário cumpre papel importante, pois tenta uma reinterpretação bem-sucedida do papel e situação social do sequestrador, quebrando estereótipos, preconceitos e estigmas criados pelos moldes jornalísticos.
A banalização da violência e suas consequências também são fortemente questionadas no filme Violência Gratuita de Michael Haneke. É emblemática a cena que envolve um televisor e seu controle-remoto - símbolos usados pelo diretor para denunciar a estetização da violência e a pretendida inocência do espectador- cúmplice. A mesma violência que movimenta a indústria cultural gerando milhões em arrecadação de bilheteria é mostrada nesse filme de maneira profunda, ajudando a desvendar e a questionar as maneiras pelas quais todos nós contribuímos para perpetuar esse culto à violência.
Não poderíamos deixar de abordar também a vulnerabilidade humana diante da sociedade de risco. Na modernidade o indivíduo pode vir a fragilizar-se de diversas formas. A violência está conectada a inúmeros campos sendo o principal deles o econômico. Estamos todos sujeitos ao desemprego, inflação e descontrole dos mercados financeiros, o resultado disso parece ser a violenta instabilidade social.
No Brasil, em especial, Notícias de uma Guerra Particular de João Moreira Salles retrata através de diferentes pontos de vista esse fenômeno. O tráfico de drogas, sustentado pelo tráfico de armas, tornou-se um comércio lucrativo, onde tornam os excluídos de uma sociedade capitalista e consumista, "trabalhadores" bem- remunerados, diante de uma visível desigualdade social. A abrangência do poder dos traficantes cresce de maneira desenfreada e seu conflito com a polícia acabou se estendendo a toda a sociedade. Hoje, o simples fato de sairmos nas ruas se tornou perigoso.
Tal violência sistêmica, no entanto, não deve ser vista apenas como uma criação do período atual, pelo contrário, como nos esclarece Ulrich Beck: “o conceito de sociedade de risco designa um estágio da modernidade em que começam a tomar corpo as ameaças produzidas até então no caminho da sociedade industrial” (1997).
Essa perspectiva histórica é abordada de maneira interessante em Caché de Michael Haneke, em que o casal Laurent recebe fitas misteriosas que filmam por longos períodos a fachada de sua residência. Gera-se então uma espiral nefasta de tortura psicológica e medo. A partir desse momento, a privacidade, o casamento, outras instituições de garantia de estabilidade e o próprio personagem se perderão no enredo intrincado do filme. O desenrolar da trama explicita a mencionada perspectiva histórica da violência, uma vez que remonta ao sistema de exploração colonial e a geração de abismos de desigualdade social, questões que são mostradas no filme através da segregação sofrida pelos imigrantes de países de terceiro mundo que tentam viver na França atualmente.
Nos filmes Old Boy e Lady Vingança de Park Chan-Wook, a opção pela violência é buscada como único recurso capaz de redimir a existência roubada dos personagens principais. Nessas obras se embarca na psicologia complexa da busca por vingança, levando os espectadores a se questionarem dentro dos dilemas morais que afligem os personagens. Essas duas histórias ganham tanta força no estilo de montagem e na direção arrebatadora de Park que a violência ganha uma aura complexa. Se primeiramente ela aparece como um fenômeno restrito à esfera pessoal e quase como um mal necessário, o diretor logo nos dará mais elementos que permitem problematizar a violência como um fenômeno coletivo, denunciando a falta de perspectiva da população de superar o impasse a que chegaram esses conflitos.
Não poderíamos deixar de abordar também formas mais sutis de violência como as que permeiam as relações humanas. Um bom exemplo nesse caso seria Na Companhia de Homens de Neil LaBute. Na tentativa de superar desilusões amorosas dois executivos de uma empresa apostam qual deles seria o primeiro a ganhar o amor de determinada garota para depois dispensá-la. Aqui, o machismo, por si só uma forma de violência infelizmente aceita e cultuada por muitos em nossa sociedade, gera uma espécie de violência emocional. É interessante notar também a ligação dessa, com outra forma de violência ainda mais disseminada por nosso sistema econômico: a competitividade. Incentivada nocivamente entre os executivos da maioria das empresas, nesse filme ela transborda o ambiente profissional e alimenta a violência praticada.
Tratando de categorias enraizadas da violência, intimidações sutis que aprisionam o cotidiano e a condição humana e agressões mais discretas, mas não menos atormentadoras, espera-se ter atingido uma pluralidade complexa do assunto, podendo iniciar-se, pois, um debate mais qualificado sobre o tema.

Éder Terrin
Ricardo Monastier
André Brunetti Suzuki
Rúbia Rebeca Neri.