LIVROS, CAMÊRA, AÇÃO!


Quando o ensaísta Walter Benjamin falou sobre o cinema em seu artigo “A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica", o autor, apesar de crítico à maneira como o cinema vinha sendo usado pelo grande capital, não deixou também de ressaltar o potencial contido nessa nova técnica artística; a saber, o de revelar a realidade em sua riqueza de detalhes, mergulhando nas minúcias que nem o próprio olho humano seria capaz de captar. Em outras palavras, o desenvolvimento da captação de imagens guardaria a capacidade para mudar, de maneira profunda, o modo como o homem percebe a realidade à sua volta. Os indivíduos, para Benjamin, estavam se tornando seres cada vez mais cinéticos!
A literatura, por sua vez, teria iniciado o processo de reprodução técnica da sua forma há muito tempo antes, com a invenção da imprensa. Houve, no entanto, um período de maturação dessa tecnologia que faria com que ela atingisse a população, de maneira mais generalizada, apenas no século XIX, quando o romance se torna algo popular. A literatura, a forma artística da linguagem, havia desempenhado, então, um papel de aproximação da arte com o público, potencial que Benjamin também enxergava na reprodutibilidade técnica da arte.
Os processos de desenvolvimento da reprodutibilidade técnica, tanto no campo do cinema quanto no da literatura, podem ter seus traços rastreados até os dias de hoje. Apesar de, em muitas sociedades atuais, a imagem ter alterado drasticamente a forma como o homem se relaciona com o mundo fazendo-o se ligar muito mais na rapidez da imagem, como Benjamin previu, e preterindo a leitura na forma do romance não devemos nos esquecer que o cinema travou, desde sempre, um diálogo intenso com a literatura, tanto na forma quanto no conteúdo! No desenvolvimento de suas aproximações com o público, ambas as formas de arte guardam potencial para arrebatar o espectador, não é á toa, então, que muitos artistas, tanto escritores quanto cineastas, reconheceram que o diálogo entre as duas artes podería oferecer novas formas de expressão artística. Marcos Polli, em seu artigo publicado no Le Monde Diplomatique, "Dos Livros para o Cinema", dá-nos exemplos desse envolvimento precoce entre as duas formas de arte: "o entusiasmo de muitos autores com o cinema é bem exemplificado pelos modernistas brasileiros: Mário de Andrade chegou a descrever o seu "Amar, Verbo Intransitivo" como um "romance cinematográfico". Já a emergente indústria do cinema mostrava-se ávida por romances e contos que pudessem dar base às suas produções" (artigo completo em: http://diplo.uol. com.br/2007-11 1989).
É importante dizer que não há apenas uma forma de relacionar cinema e literatura. Uma primeira forma ocorre quando o enredo e a trama da obra literária são claramente perceptíveis no roteiro cinematográfico. Dentro disso, há obras que se baseiam em um romance de renome, com história e autor já consagrados, como ocorre com os filmes Um Amor de Swann, obra-prima de Marcel Proust que tem sua versão no cinema dirigida por Volker Schlondörff, Morte em Veneza, escrito por Thomas Mann e levado para as telas por Luchino Visconti, Lolita, romance de Vladimir Nabokov que ganhou seu filme pelas lentes de Stanley Kubrick, e o brasileiro Macunaíma, rapsódia de Mário de Andrade que é transposto para as telas do cinema por Joaquim Pedro de Andrade.
O caso dessa última obra é especialmente interessante, pois se o romance já havia sido representante da vanguarda do modernismo literário brasileiro, o filme, por sua vez, foi produzido no calor do momento de outra importante época da história da vanguarda brasileira, a saber, a época de surgimento do Cinema Novo, na década de 60, que irá culminar na Tropicália. Tanto o livro como o filme adquiriram força e significado em momentos diferentes, no entanto, seguindo a mesma temática e estrutura. Isso só reforça o fato de que, a transposição da gramática própria da arte literária para a gramática particular do cinema constitui, por si só, um ato de inovação artística, não se reduzindo a mera cópia ou tradução Ipsis litteris das histórias literárias.
Ainda dentro dessa forma, há filmes que, baseados em romances não tão conhecidos, tiveram grande repercussão e puderam dar maior visibilidade às obras literárias. O ótimo Pecados Íntimos, baseado no romance “Criancinhas” de Tom Perotta, o sombrio A Dama de Honra, ancorado no romance homônimo de Ruth Rendell, e o original O Cheiro do Ralo, adaptação do primeiro livro de ficção do cartunista Lourenço Mutarelli, são algumas das obras que ganharam repercussão pós-cinema e que estão nessa mostra.
Uma outra forma de diálogo, pode-se dizer, diz respeito a uma transposição não completamente fidedigna da obra literária, mas sim a uma intertextualidade pontual, que permite a extração dos temas universais do romance e sua tentativa de atualização. Em Match Point, Woody Allen reconstrói, a partir de outro ângulo, a inesquecível cena do assassinato de “Crime e Castigo". A partir daí, estabelece-se um diálogo questionador e irônico com os temas centrais do romance de Fiódor Dostoiévski. As questões da coincidência, da sorte e do imprevisto tomam no filme a mesma envergadura que possuem na obra literária. A ética, obscurecida pelo brilho dos ideais em “Crime e Castigo", é apagada, em Match Point, pela escalada da ganância. É como se Woody Allen nos dissesse que os temas tratados por Dostoiévski ainda são pertinentes, podendo ser revisitados pelo viés dos valores da sociedade atual.
Vemos então que esses dois campos não têm se desenvolvido de maneira autônoma. A literatura nunca deixou de desafiar o cinema no que tange à riqueza da linguagem. O cinema, por sua vez, instiga a literatura pela riqueza de suas construções imagéticas. Se o cinema se esforça por conseguir transpor a beleza da composição lingüística, por outro lado, a literatura vive uma fase em que não pode deixar de prestar contas aos estonteantes planos cinematográficos. As várias formas de diálogo que os diferentes campos da arte podem travar ainda estão por serem explorados, a Mostra "Livros, Câmera, Ação!" tem por intuito despertar essas formas novas e ousadas da criatividade.
Desejamos a todos ótimas leituras cinematográficas!

Éder Terrin.