MEMÓRIA DESENHADA
Os fundamentos da animação como a conhecemos hoje surgem no fim do século XIX em paralelo às "fotografias em movimento", como reflexo de uma grande demanda por imagens iniciada algumas décadas antes pela fotografia. Com o invento do cinematógrafo e equipamentos derivados, surge uma nova possibilidade comercial, especialmente no Ocidente. O estabelecimento da animação como linguagem se dá muito rapidamente nos EUA, seguindo os passos do Cinema (linguagens ainda distintas). Em 1909 quando o americano Winsor McCay transpõe para animação as personagens de seus cartuns Little Nemo e Gertie, the Trained Dinossaur, utilizando de modo complexo a perspectiva e os movimentos, dissemina-se a idéia da animação como curta-metragem, como parte da programação dos cinemas. Hoje em dia isso se reflete nas animações curtas da Pixar que passam antes de seus longas, como garantia de qualidade do que está por vir e da própria capacidade de produção, criando um laço de confiança entre espectador e estúdio.
Nos anos 20 e 30, a possibilidade de filmes sonoros dita os parâmetros formais dos filmes. Os grandes estúdios criam séries de animações musicais como Happy Harmonies (MGM), Merry Melodies (Warner) e S/V/Y Symphonies (Disney) que refletem o frisson da novidade tecnológica. Esta demanda pela música com imagens é muito bem aproveitada por Walt Disney, animador que montara seu próprio estúdio de produção nesta época de transição para o cinema sonoro e colorido. A série de Disney era composta de curtas-metragens com uma trilha de efeitos sonoros e musicais muito elaborados, a fim de ampliar seu apelo internacional, como acontece até hoje marcando gerações com a variação da mesma base visual e sonora. Seu Flowers and Trees (1932) foi a primeira animação completamente colorida a ser premiada com o Oscar na categoria de Melhor Curta-Metragem. A animação ganha a partir daí um status maior em relação ao seu potencial artístico, econômico e, principalmente narrativo. Então em 1937, Walt Disney lança Branca de Neve e os Sete Anões, o primeiro longa-metragem de animação do mercado norte-americano que aproxima de vez o desenho animado aos chamados “filmes de cinema".
A temática em geral das animações narrativas, principalmente as da Disney, tende a ser mais ingênua, voltada a um público infantil: contos de fadas, espetáculo visual e sonoro e dramas morais. Fantasia e Rei Leão são exemplos desse tratamento voltado ao fantástico, ainda que separados por quatro décadas.
Com o sucesso e consolidação dos longas-metragens de animação, buscaram-se cada vez mais histórias a serem adaptadas para as telas, e uma destas fontes de inspiração desde sempre foram as histórias em quadrinhos. Snoopy, Volte para Casa sai das tirinhas de jornal e, no Brasil,Turma da Mônica - Cine Gibi sai dos quadrinhos de maior sucesso de Maurício de Souza, sendo um dos poucos longas animados brasileiros existentes, se tornando viável apenas para o dono de um império erguido a partir dos quadrinhos, que nas devidas proporções é comparável ao sucesso dos desenhos de Disney. A concorrência dos grandes estúdios americanos e sua rica estrutura dificultou o desenvolvimento da técnica no Brasil, mas não é só dos grandes estúdios que saem as grandes animações.
Destes exemplos de fora do grande circuito podemos ir de Akira, ícone inovador do gênero, ao autobiográfico Persépolis. Neles podemos perceber uma mudança drástica em termos de linguagem e abordagem dos temas. Chocam por sua violência e temas adultos, apesar de tratarem de adolescentes ou crianças, focando-se na guerra e em situações completamente inadequadas ao público infantil. Vemos surgir, então, uma ruptura do tratamento da realidade no desenho animado, abandonando o conto de fadas, acrescentando ambiguidade, crítica ácida e situações mais complexas do ponto de vista moral. Essa tendência surge mais evidentemente no pós-guerra e nas animações de fora dos EUA, que com o tempo influenciam as animações americanas como reflexo da própria realidade.
Ainda que a "animação clássica" resista a estas influências, gradativamente o purismo do gênero se dilui para dar espaço a construções mescladas, para incorporar as nuances de um olhar mais crítico. Nas animações de computação gráfica 3D, que visualmente se aproximam mais de uma ilusão do real, vemos esse tipo de transformação. Toy Story - Um Mundo de Aventuras, um dos primeiros longas de computação gráfica, ainda é voltado para o público mais jovem, tratando de um universo fechado em si mesmo. Tratamento que vemos mudar com a aproximação mais ácida de Shrek, que ironiza a própria animação e o conto de fadas, tomando posse dos clichês para atingir um humor mais crítico. Nota-se então uma crescente perda da inocência, principalmente em função do mercado que com um único filme passa a visar uma faixa etária mais ampla.
Passamos, então, a infância assistindo desenhos animados e nas férias íamos ao cinema ver "o novo filme da Disney" como a coisa mais natural a se fazer. De uma forma ou de outra os desenhos marcaram nossas vidas e agora podemos novamente assistir alguns destes ícones postos lado a lado, buscando um novo sentido para além da nostalgia. No que esses brinquedos óticos ajudaram a nos constituir, o que isso significou, no que nos afeta? Sabemos muito pouco. Mas destas inúmeras férias que passamos no cinema ou em frente à televisão absorvemos algo e sabemos que quando uma pessoa diz "ei, mas isso ê só um desenho!", ela pode estar completamente enganada.
Boas sessões!
Obs: A maior parte dos curtas-metragens citados estão disponíveis no Youtube.