TRADIÇÃO EM COLAPSO


Vivemos sob a influência da rotina como criadora de um estado de normalidade, no qual a repetição de determinados códigos nos mantêm seguros do imponderável, do diferente, do que nos é estrangeiro. Convencionalmente as narrativas de cinema se estabelecem sobre esta ameaça ao equilíbrio, seja de uma situação ou personagem. A trama das histórias geralmente tendem a resolver os problemas surgidos e a retornar a harmonia inicial. Filmes em que a família é o foco temático, por exemplo, revelam sutilezas morais e de comportamento humano muito peculiar nesse sentido de formação do imaginário do dia-a-dia que a rotina cria. Tais filmes nos mostram como determinados indivíduos em sua época e cultura observavam essas relações intrínsecas do ser humano. Temos uma longa história de filmes que vendem ideais do lar perfeito, mas o que nos interessa nesta mostra é observar filmes em que essa tradição familiar - moral, cotidiana, política - entra em colapso, como reflexo da re-elaboração de valores da realidade. Vemos não apenas assassinos de famílias (metafóricos ou não), mas também famílias assassinas. O cinema nos mostra então que pode desmistificar o espaço familiar para representá-lo com mais liberdade e menos pudor.
Não que se trate de um movimento cronológico, de um suposto amadurecimento do cinema, pois hoje em dia ainda se vêem ideais de perfeição fabricada, o que nos interessa é observar as rupturas, falsas ou não, que acabam criando novas tradições, cada vez mais mutáveis. Viridiana, de Bunuel, já nos mostra que a inquietude não é questão de época, mas de espírito; em 1961 ele nos mostra a construção de uma família que se revela perturbadora na qual os laços se confundem com correntes. Não seriam essas mesmas correntes invisíveis que prenderiam o casal de O Bebê de Rosemary àquele prédio maldito? A família tem que se preservar, ainda que na ironia demoníaca de Polanski que busca inverter o fluxo natural dos clichês de recém-casados, mais ou menos como essa mostra do Cinusp tenta redesenhar a rotina da Semana Santa.
Poderemos rever também O Bandido da Luz Vermelha sob esse ângulo (não) familiar, observando a cria esperneante de Sganzerla como indivíduo desprovido de qualquer tipo de laço, e que através desta leveza niilista, invade casas e destrói famílias. Em A Queda - As Últimas Horas de Hitler, o líder fracassado não tem mais saídas, restando o desespero diante da morte, mas não o desespero do bandido de Sganzerla, mas o desespero patético de manutenção forçada de ideais insustentáveis. As crianças no bunker e os soldados como filhos desconsolados denotam um momento de desconstrução de uma nação, assim como filhos que abandonam suas casas, deixando a tradição para o passado.
O terreno sagrado das tradições e assuntos inquestionáveis se torna menor nas telas de cinema quando tratados com menos polidez e mais rebeldia, com leveza que trás à tona questões graves. De onde vêm os traumas de Festa de Família, os segredos cruéis de Marcas da Violência, o cinismo matrimonial de Fargo? De onde surge essa família maldita de O Bebê de Rosemary, esse inimigo da paz familiar de Cabo do Medo? De onde viria tanta dor e sangue?