MOSTRA DE DOCUMENTÁRIOS URBANOS - INVENÇÕES NO COTIDIANO


O problema não é de inventar o espaço, ainda menos de reinventá-lo (...), mas de interrogá-lo, ou, mais simplesmente ainda, de lê-lo; pois o que nós chamamos cotidianidade não é evidência, mas opacidade: uma forma de cegueira, uma maneira de anestesia.
Georges Perec, "Espèces d’Espaces".

“O dia a dia se acha semeado de maravilhas”, observou Michel de Certeau. Maravilhas que surgem nas trocas, interações, apropriações e vivências cotidianas, fabricadas por uma criatividade anônima e clandestina mas que, agindo sobre corpos, comportamentos e ambientes, seria tão fascinante quanto “a dos escritores ou dos artistas”. Provisórias e intermitentes, resistentes e precárias, variantes e divergentes, pulverizadas e estratificadas no espaço-tempo das cidades, essas “artes de fazer” dos habitantes são capazes de turvar, com sua opacidade, até mesmo as aparências mais luminosas. É assim que, por mais que se tente controlar e espetacularizar a vida urbana, vai restar ali sempre algo de ignorado, indeterminado, imprevisível. Nesse sentido, Chris Marker já havia afirmado que “não há chaves para Paris, todas foram jogadas no Sena”.
No entanto, não é qualquer olhar que capta essas pequenas maravilhas escondidas no cotidiano urbano. Para vêlas, podemos seguir a indicação de Machado de Assis e praticar um “olhar de míope”, que à distância enxerga apenas nebulosidades e, de perto, só vê “coisas miúdas”, os recônditos e interstícios que as “grandes vistas” não alcançam. Talvez essa seja a principal função do cinema, e mais especificamente do documentário, ao filmar as cidades: se implicar, entrar "na vida” ultrapassando os limites do visível para apreender aquilo que elas só mostram por dentro, e que -como prenunciava Dziga Vertov - acontece “ao improviso”. Através dos filmes e vídeos reunidos nesta 1a edição da Mostra de Documentários Urbanos, intitulada “Invenções no Cotidiano”, pretendemos propiciar ao espectador essa experiência.
São documentários e semi-documentários realizados ao longo dos últimos 50 anos por cineastas como Agnès Varda, Mário Handler, Johan van der Keuken, Robert Kramer, e os brasileiros José Joffily, Ugo Giorgetti, Cao Guimarães e Aloysio Raulino, entre outros, boa parte deles raramente exibidos no Brasil. Tratam de questões da vida cotidiana em várias cidades do mundo, desde grandes metropóles como São Paulo e Paris, à pequena Datung, no interior da China, possibilitando dialogarem diferentes épocas, situações e contextos urbanos. Bairros, ruas, conjuntos habitacionais, favelas, ocupações de sem-teto e diversos outros ambientes da cidade são mostrados como lugares de solidariedade e conflitos, de resistências e capitulações, de permanências e transformações. Ou seja, tudo o que torna a vida urbana uma composição complexa, heterogênea, ambígua, cheia de tensões e incessantemente mutante.

Silvana Olivieri, curadora.