O CINEMA DE QUÉBEC - CANADÁ


Em suas parcerias para a promoção da cultura cinematográfica mundial no Brasil, a Cinemateca Brasileira e o CINUSP "Paulo Emílio" têm dedicado especial atenção aos filmes raramente contemplados em mostras e festivais realizados em São Paulo. Assim, dando continuidade à sua política de formação de público, é com enorme satisfação que oferecemos esta seleção de filmes produzidos num dos principais pólos de criação audiovisual do Canadá - a província de Québec.
Afora lançamentos esparsos no mercado exibidor brasileiro e projeções pontuais em festivais - além, é claro, da presença em nosso imaginário de nomes consagrados como Norman McLaren a difusão do cinema do Canadá ainda é tímida diante de sua riqueza e variedade. Desta forma, cumprindo mais uma vez seu papel de colocar o público em contato com diferentes cinematografias, a Cinemateca Brasileira e o CINUSP “Paulo Emílio’’ apresentam a mostra O Cinema de Québec
Por meio da exibição de filmes de ficção e documentários e do debate com realizadores e especialistas, espera-se que o evento possa suscitar um interessante diálogo entre realidades culturais teoricamente tão díspares - como a brasileira e a canadense. Dentre as possibilidades de aproximação entre estes dois contextos, merecem destaque as experiências dos artistas de vanguarda na Québec dos anos 1960, representadas na mostra pelos filmes ligados à chamada “Revolução Tranquila" e pela produção audiovisual dedicada às questões envolvendo os povos indigenas.

Cinemateca Brasileira
CINUSP “Paulo Emílio”

Porque Québec

Vivi em Québec um ano. Um tempo nem muito longo, nem muito curto. O suficiente para me surpreender. A provincia, como um todo, é sedutora. Mas não foram suas belezas ou bom humor e gentileza dos canadenses que me seduziram. Fui atraída pelo avesso. Québec, Montreal, Gatineau, Trois-Rivières e a vasta região litorânea da Côte-Nord revelaram-me experiências urbanas avessas às de meu cotidiano paulistano. Foi como ver São Paulo por um espelho invertido. Isso me fascinou.
Fascinava-me a neve cobrindo a paisagem por intermináveis meses, o silêncio das ruas no inverno, as casas sem muro, a inabalável tranquilidade do cotidiano, o prazer das caminhadas no inicio da primavera, a maciça ocupação dos espaços públicos quando as temperaturas se elevam, as bicicletas cortando a visão e os caminhos...
Buscando compreender meu espanto e encanto, descobri nos filmes canadenses a chave para algumas das minhas perguntas. Grande parte deles, ausente do mercado cinematográfico exibidor, se passa em Québec, um dos pólos culturalmente mais vibrantes do Canadá e, no entanto, menos conhecido fora do eixo norte-americano.
Québec, a maior província do país, a segunda mais habitada do Canadá, e a primeira a ser colonizada pelos franceses, conseguiu, nos anos 1960, ter o Francês reconhecido como primeira língua oficial. Esse foi um momento de grande ebulição cultural, quando se instaurou a Revolução Tranquila, inflexão histórica que reverberou em todas as esferas da sociedade, criando condições para a consolidação, na vida social e artística, de uma identidade nacional.
No Brasil, quando pensamos no cinema canadense, o associamos comumente ao cinema de animação, aos trabalhos pioneiros do escocês Norman McLaren e a toda uma geração que se seguiu e que se perpetua. Todavia, renomados diretores, sem que saibamos sua origem canadense, chegam até nós, como é. Por exemplo, o caso dos filmes de David Cronenberg.
Especialmente nos últimos 10 anos, começaram a se diversificar as ofertas de filmes canadenses para o público brasileiro. Vide os dois filmes de Denys Arcand, O Declínio do Império Americano e Invasões Bárbaras, nos quais o diretor passeia harmoniosamente entre a crítica social e a reflexão individual. Ou ainda a excelente radiografia dos anos 1960 e 1970 de C.R.A.Z.Y., de Jean Marc Vallée, um sucesso de bilheteria para os padrões do relativamente pequeno mercado de Québec, e muito bem recebido no Brasil.
Sem dúvida, é graças a mostras e festivais, e não ao circuito comercial cinematográfico, que temos tido a oportunidade de, nos últimos anos, nos aproximarmos da diversidade da filmografia canadense. Nesse processo, merece destaque o papel desempenhado pela Mostra Internacional de Cinema, na qual trabalhos como Politécnica, de Denis Villeneuve; Papai foi Caçar Ptármiga, de Robert Morin; Eu Matei Minha Mãe, de Xavier Dolan; A Oeste de Plutão, de Flenry Bernadet e Myriam Verreault; e As Damas de Azul, de Claude Demers, são apenas alguns dos recentes títulos exibidos.
Nessa primeira edição da mostra, colocamos o público brasileiro em contato com um conjunto de filmes não só oriundos do grande circuito das salas de cinema de Québec, mas igualmente de um cinema independente, buscando delinear os contornos do ser, do ver e do pensar québécois.

Paula Morgado, junho de 2010.

Breve introdução ao cinema de Québec

Impossível falar do cinema de Québec sem abordar a questão, sempre atual, da identidade quebequense. Tal como o Brasil na América Latina, o Québec, majoritariamente francófono, distingue-se linguísticamente na América do Norte. Se essa diferença, por vezes, atua como um escudo ao tsunami americano, ao mesmo tempo, contribui como um fator de isolamento.
O cinema de Québec levou muito tempo para vir ao mundo. Questionada pela toda poderosa igreja católica no início do século XX, a sétima arte caiu rapidamente sob seu controle. Enquanto os cineastas de batina ocupavam todo o espaço do filme documental, os filmes estrangeiros eram alterados pela censura exagerada. Nos anos 40 e 50, as primeiras ficções, geralmente melodramas, estavam associadas a uma sociedade tradicional. Nos filmes mesclavam-se, quase sempre, uma criança maltratada, um avarento tirânico, um padre de vilarejo e um soldado órfão.
Foi preciso esperar o fim dos anos 50 e o surgimento do cinema direto, uma revolução documental que permitiu ecoar as vozes dos quebequenses - mais comumente chamados de Canadenses franceses - para que o cinema se modernizasse.
Esse novo ponto de partida correspondeu ao mesmo momento que levou ao Cinema Novo brasileiro. A consagração veio em 1963 com a seleção em Cannes de Pour la Suite du Monde, de Michel Brault e Pierre Perrault, um ano antes do festival exibir Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha. Em Québec como no Brasil, a hora era de mudança. A Revolução Tranquila quebequense, que correspondeu ao recrudescimento do nacionalismo, abriu uma grande porta para o cinema. Tudo estava por ser feito.
Nesse contexto, a ficção se afirmou progressivamente. As primeiras obras pessoais emergiram no início dos anos 60, seguidas no fim da década por uma onda de filmes eróticos que atraíam multidões e tinham eco na irreversível revolução sexual. Nos anos 70, o cinema, como o teatro, replicou a língua popular, distanciando-se do francês falado na França, Curiosamente, tal afirmação identitária, por vezes excessiva, produziu muitos poucos filmes de caráter político. Todavia, autores deixaram suas marcas, como Claude Jutra, Gilles Carie, Denys Arcand, vozes majoritariamente masculinas às quais se somarão, lentamente, as de diretoras apoiadas pelo movimento feminista.
A cinematografia quebequense parecia, então, polarizada, dividida entre os que produziam dramas populares, representados por vedetes da música e da televisão, e cineastas que assinavam obras pessoais. Progressivamente, adotaram-se os códigos de uma indústria cinematográfica, modelo no qual o papel de cada um é claramente definido. Embora a ficção estivesse cada vez mais em voga, o documentário social ocupava ainda um lugar de destaque, tingindo a ficção de realismo, resultado do vai e vem de vários dos diretores entre esses dois gêneros. O cinema de animação, por sua vez, produziu obras reconhecidas em todoo mundo, começando pelas incontornáveis obras de Norman McLaren e Frédéric Back.
Após um cansaço, uma periodo de mutação, a ficção recebeu um novo élan em meados dos anos 80, notadamente motivada pelo sucesso de O declínio do império americano, de Denys Arcand, e a glória da coleção dos Contes pour tous, filmes que reuniam crianças de numerosos países. No entanto, até o fim do século passado foi a comédia que triunfou. Ironizava-se a migração à Florida, no inverno dos quebequenses, a sedução que exercia o modelo americano, o poder hipnótico da televisão, as incompetências do homo quebecus ou a afirmação da comunidade homossexual. Não mais exportável que as demais comédias produzidas pelo mundo, tais filmes salientavam anti-heróis que resistiam às pressões externas e aos que detinham o poder. Raramente os heróis encontravam seu lugar nos filmes quebequenses.
Os anos 2000 foram um marco para o cinema quebequense. Mais do que nunca.
O público estava presente. Em 2005, o cinema nacional atingiu o auge de sua popularidade com um mercado de 18,9%, uma taxa sete vezes superior à registrada dez anos antes. A título de comparação, a cinematografia canadense inglesa fora do país contenta-se habitualmente com um mercado de 1%. Exceção deve ser dita sobre Québec. Esse fenômeno, observado ao longo da década, deve-se a diversos fatores: a diversidade dos gêneros, o poder de sedução dos atores apreciados pelo público, um estímulo maior à produção de filmes no conjunto do Canadá e o surgimento de uma geração de cineastas que aspiravam a balartçar as convenções. Enquanto alguns revisitavam os clássicos dos anos 40, outros colocavam vampiros pelas ruas de Montreal ou transpunham para o cinema o universo de séries de televisão.
Vários filmes lotaram as salas de Québec e circularam no exterior, algo que por muito tempo acreditávamos ser impossível. Graças a obras como a La grande séduction, C.R.A.Z.Y., Les Invasions Barbares, Bom Cop, Bad Cop e L'ai Tué Ma Mère, os quebequenses se sentem, cada vez mais, orgulhosos de seu cinema. Embora poucos sejam verdadeiramente rentáveis, produtores e distribuidores, seguindo o modelo americano, buscam fórmulas lucrativas. A partir do momento em que um filme alcança sucesso, prepara-se uma continuação e se um drama policial fracassa em audiência, isso não se deve mais unicamente ao gênero.
Em 2010, o cinema quebequense continua preso a dois pólos. De um lado, o cinema comercial: de outro, os filmes de autor. O eterno debate se funda, a partir de então, sobre a partilha do financiamento público. Alguns cineastas se manifestam contra as vantagens consentidas aos produtores e condenam a busca de uma rentabilidade ilusória. Mas é pouco provável que cheguemos a eliminar tal debate no seio de uma profissão que desfruta, de modo reincidente, do imenso sucesso do drama policial De Père em Flic e orgulha-se em produzir filmes carregados de sentido como Polytechnique, Tout Est Parfait, Ce Qu'il Faut Pour Vivre, La Neuvaine ou Dédé à Travers les Brumes.
Acoplado aos debates em questão e sempre à mercê das flutuações do financiamento governamental, o cinema de Québec continuará a caminhar em equilíbrio entre suas ambições artísticas e suas pretensões comerciais, ora pendendo para a esquerda, ora para a direita, mas não tendo outra escolha além de endireitar-se na medida em que faz um passo em falso. Na era da globalização e dos movimentos migratórios, emerge a imagem de uma sociedade moderna, amedrontada e, cada vez mais, atingida pela criminalidade, cuja identidade está em perpétua transformação. Nisso, Québec não é provavelmente tão diferente do Brasil...

Michel Coulombe.

A mostra

O Cinema de Quebec reúne 27 trabalhos inéditos no Brasil, muitos deles premiados no Canadá e internacionalmente. Trata-se da primeira retrospectiva de filmes de ficção e documentários sobre Québec exibida para 0 público brasileiro. Os filmes, diferentes na abordagem, nos temas e nas épocas, revelam uma Québec em transformação após um grande isolamento da cena cultural mundial.
Em 1948, ao colocar em xeque valores tradicionais e o imobilismo da sociedade quebequense, um grupo de artistas assina o Manifesto Refus Global, tornando-se uma referência cultural para os movimentos artísticos e políticos que viriam eclodir a partir dos anos 1960. Nesse momento, Québec sofre uma radical mudança sócio- cultural que resultará na chamada Revolução Tranquila. Músicos, poetas, escritores, artistas, cineastas e políticos se engajam por uma Québec livre do peso religioso e tradicionalista. Esta revolução está aqui representada em diversos filmes.
Em Le Chômeur de la Mort, Benjamin Hogue e Pierre-Luc Gouin traçam um perfil do controvertido e célebre poeta Claude Péloquin, que marcou a cena cultural de Québec dos anos i960 e 1970. Realizando uma critica autoral após 40 anos do Refus Global, a cineasta Manon Barbeau, filha de um dos signatários, realiza o filme Les Enfants du Refus Global, de grande carga emocional e ousadia.
Herdeiro da geração pós-Revolução Tranquila, destacamos o trabalho de André Gladu, que comparece a esta mostra com dois filmes. Em fe suis fait de musique, mostra-se insaciável em suas buscas pelas raízes da identidade de Québec por meio das viagens musicais que nos proporciona, abordando a tradição do acordeão em Montréal. Já em La Conquête du Grand Écran faz um retrato sobre a história do cinema quebequense.
Paralelamente à eclosão de inúmeras produções culturais a partir da década de 1960, começam a surgir os primeiros filmes que tratam dos povos indígenas, até hoje pouco conhecidos do próprio público canadense. O cineasta Arthur Lamothe é um dos pioneiros nesse registro, produzindo uma extensa obra de mais de 100 filmes apenas sobre oslnnu, povo indígena do leste do Canadá situado majoritariamente na região da chamada Côte-Nord de Québec. O público brasileiro poderá conhecer um destes filmes, On disait que c’était notre terre, além do seu primeiro documentário, Les Bûcherons de Manouane, que já traz sua marca, ou seja, seu interesse pelo outro, aquele que vive à margem. Nesse caso, o foco de sua preocupação é a áspera vida dos lenhadores de Manouane, na região da Haut-Saint-Maurice.
Com o intuito de introduzir a complexa realidade indígena, selecionamos filmes bem distintos em suas abordagens e estilos. A ficção Ce Qu'il Faut Pour Vivre, de Benoit Pilon, trata do difícil, mas possível, diálogo entre a sociedade Inuit e a quebequense-canadense dos anos 1950; e no filme Qallunaat, Why White People Are Funny, de Mark Sandiford, feito com os Inuit, o diretor inverte os papéis de quem está atrás da câmera; são os Inuit que fazem um divertido documentário “antropológico" sobre a sua visão acerca do homem branco.
Com o filme Une Tente sur Mars, protagonizado pelos Innu, os diretores Luc Renaud e Martin Bureau provocam uma reflexão importante e atual sobre o lugar dos povos indígenas na sociedade quebequense e, acima de tudo, o que vem ser a identidade de Québec dentro da nação canadense. Finalmente, os curtas do projeto Wapikoni Mobile, coordenado pela cineasta Manon Barbeau, permitem há cinco anos que, pela primeira vez, jovens indígenas de diferentes nações expressem seus desejos e inquietações. O resultado é surpreendente.
Os jovens cineastas Anais Barbeau-Lavalette, Hugo Latulipe e Luc Bourdon nos revelam uma Québec contemporânea, preocupada em revelar suas idiossincrasias, sua história e sua identidade. Em La Mémoire des Anges, de Luc Bourdon, mergulhamos em uma Montreal urbana e cosmopolita, com base na montagem de trechos de 120 filmes produzidos nos anos 1950 e 60; o resultado é um painel imagético vigoroso e poético. Manifestes em série, realizado em 2008 por Hugo Latulipe, pode ser lido como uma reatualização do manifesto Refus Global, representado, nesta mostra, pelo episódio Décoloniser le Pays, que faz uma reflexão sobre o consumo desenfreado em nossa sociedade. Inspirado na visão dos povos indígenas, o filme mostra que um extrato cada vez maior da população canadense se opõe a isso.
O filme Le Ring, de Anaïs Barbeau-Lavalette, realizado no bairro pobre de Hochelaga-Maisonneuve, insere-se dentro de uma tradição de cinema social e traça um perfil sensível de um menino oriundo de uma família de baixa renda que sonha em ser um grande boxeador. O filme aborda um viés social pouco conhecido acerca da realidade canadense.
Dédé, à Travers les Brumes, de Jean-Philippe Duval, é protagonizado pelo músico Dédé, que se destaca na cena musical de Québec nos anos 1980. O filme aborda uma época de grande efervescência cultural que sonha com a independência de Québec. Numa linguagem que combina documentário, ficção e arte, os filmes dirigidos por Lysanne Thibodeau, Esprits de Famille e Éloge du Retour, perseguem as origens do espirito de Québec dentro de uma narrativa intimista.
Para melhor compor esse mosaico quebequense, selecionamos dois filmes de dois realizadores de origem estrangeira que adotaram o Canadá como sua moradia: Le Voyage du Capitaine Michaud, de Yann Langevin, numa narrativa bem-humorada, nos apresenta o simpático marinheiro Michaud, originário da Gaspesie, que empreende um périplo em seu barco desde sua cidade natal, Saint-Anne-des-Monts, até o Haiti. No curta-metragem La Neige Cache l'Ombre des Figuiers, de Samer Najari, acompanhamos um dia de trabalho de seis imigrantes recentemente chegados em Montreal e o impacto do primeiro frio glacial.
Finalmente, com os curtas-metragens Lila, de Robin Aubert, e Killing Time, de Tara Johns, trazemos dois filmes premiados que evocam o vigor do cinema de curta- metragem de Quebec.
O objetivo da mostra é colocar em contato o público brasileiro com a realidade de Québec, suscitando uma discussão em torno de sua identidade. O evento realiza-se simultaneamente na sala de cinema da Universidade de São Paulo (CINUSP) e na Cinemateca Brasileira, em São Paulo.
Agradecemos o apoio da Sociedade Amigos da Cinemateca, da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão da USP, do Laboratório de Imagem e Som em Antropologia (LISA) da Universidade de São Paulo, do Consulado Geral do Canadá em São Paulo, do Escritório do Québec em São Paulo e da empresa Rio Tinto Alcan, sem os quais esta empreitada seria impossível.

João Claudio de Sena e Paula Morgado, curadores da mostra.