BRECHT NO CINEMA


Sempre haverá mitos, mas deles podemos nos despir atualizando-os no presente, em nossa própria experiência, aproximando-nos do que de fato restou. Uma mistura de brinquedo e arqueologia. O que de Bertold Brecht sobrou foram os escritos, mas também filmes. Mas não pensemos que os filmes seguiram na História mais íntegros que suas peças, por exemplo, porque estas seriam passíveis de interpretações (literalmente), variações. Os filmes também o são, por motivos diferentes, seja pelo modo como desvendamos as imagens em outro contexto ou pelos cortes de censura, mutilando cópias. Podemos ver o que nos restou.
Brecht mais escreveu para o cinema do que dirigiu. Colaborou diretamente na realização de nove filmes e onze textos adaptados para a tela. Deixou ainda vários roteiros completos e mais de vinte argumentos. Em 1932, pouco antes de se exilar, ocorreu um dos episódios mais significativos da relação de Brecht com o cinema: o filme Kuhle Wampe: ou A Quem Pertence o Mundo?. Este é o único filme em que efetivamente colaborou, com liberdade e entusiasmo, da elaboração do argumento aos trabalhos de direção e filmagem. Este filme causaria uma situação curiosa quando no "tribunal" um censor argumenta com os realizadores os motivos para censurar o filme, desdobrando inesperadamente a estética brechtiniana:

A censura criou-nos grandes dificuldades e houve uma sessão com o representante da censura e os advogados da sociedade cinematográfica. O representante da censura mostrou-se inteligente: “Ninguém vos contesta o direito de descrever suicídios. Suicídios, vários deles aconteceram. Vós podeis também descrever o suicídio de um desempregado. Suicídios de desempregados igualmente ocorreram. Eu não vejo razão, senhores, de ficar em silêncio sobre isso. No entanto, faço uma objeção contra a maneira de descrever o suicídio de vosso desempregado. Ela é inconciliável com os interesses da coletividade que devo defender: estou desolado de dever vos fazer aqui uma censura de ordem artística”. Nós (ofendidos): “?”. Ele continuou: “Sim, vós ides admirar-vos que eu censure a vossa descrição por não me parecer suficientemente humana. Não é um homem o que vós mostrais (digo-o tranqüilamente), mas um tipo. Vosso desempregado não é um verdadeiro indivíduo, não é um homem de carne e sangue, diferente dos outros, com suas preocupações particulares, suas alegrias particulares e, no final das contas, seu destino particular. Ele é representado de maneira completamente artificial (desculpai, enquanto artistas, esta expressão um pouco brutal): nós aprendemos muito pouca coisa sobre ele. Entretanto, as conseqüências são de natureza política e forçam-me a opor-me à liberação de vosso filme. Este filme tende a fazer do suicídio um fenômeno típico, alguma coisa que não é a ação de um ou outro indivíduo doente, mas o destino de toda uma classe!!! Vós sois da opinião que a sociedade conduz os jovens ao suicídio, recusando-lhes a possibilidade de trabalhar. E vós não vos incomodais em dizer o que seria preciso aconselhar aos desempregados para que haja uma mudança neste domínio. Senhores, vós não vos comportastes como artistas. Não neste caso. Vós não vos inquietais de dar forma a um comovente destino individual, do qual ninguém poderia vos impedir”. (...) Com obstinação, acrescentou: “vós deveis, porém, admitir que vosso suicídio evita tudo o que há de impulsivo. O espectador não é levado a fazer nada para a isso se opor, o que deveria, no entanto, ser o caso de uma apresentação artística e calorosamente humana. Meu Deus! Que ator fez isso como se mostrasse de que maneira se descascam os pepinos!”.
(...) Saindo da sala, nós não ocultávamos nossa admiração por esse censor tão lúcido. Ele tinha penetrado bem mais profundamente na essência mesma de nossas intenções artísticas do que os críticos mais benevolentes para com nossa proposta. Ele tinha conseguido dar um pequeno curso sobre realismo. Do ponto de vista da polícia.
(Bertolt Brecht em Pequena Contribuição ao Tema do Realismo).

Este duplo julgamento do filme traz questões importantes do legado brechtiniano (os restos) que podem ser encontrados ainda em pauta no cinema contemporâneo. Portanto, essa arqueologia - fazer uma mostra de "Brecht no Cinema", rever tais filmes - prefere ser menos homenagem (porque estanque), e mais uma tentativa de fazer decifrar tais idéias de cinema no mundo de hoje, para colocá-las em circulação, para rechaçá-las, para abarcá-las. Terreno arado, vida nova. Mudam os tipos e a História continua.
O homem do colarinho pergunta: "E quem vai mudar o mundo?". A operária responde: "Aqueles a quem o mundo não agrada."

Boas sessões!