CINEMA DE FEIÇÃO


"Fotografar um rosto é fotografar a alma que há atrás dele. A fotografia é a verdade. O rosto é a verdade vinte e quatro vezes por segundo." Bruno, em O Pequeno Soldado (Le Petit Soldat, 1960, Jean- Luc Godard)

Quando se fala em feature films — termo que é um sinônimo aproximado de "longa-metragem"— raramente se pensa no jogo de palavras que está contido no próprio termo: feature significa feitura, feição mas é também a parte mais importante de algo. A feitura de uma feição é a arte de retratar. Poderia se falar então em um certo cinema para o qual o modo de filmar o rosto das pessoas em cena é o ponto fundamental para a construção fílmica.
Partindo dessa hipótese, podemos traduzir feature film como "filme de feição": filmes, longas-metragens ou não, ficcionais ou documentários, que analisam os rostos das pessoas, que têm os planos próximos como unidade principal, ou seja, que apostam no expressivo da superfície das faces.
Os filmes presentes nesta mostra apresentam como denominador comum o predomínio do uso consciente dos planos próximos faciais como modo de retratar o que se passa dentro das pessoas em cena. Demonstra-se a importância histórica do cinema de feição numa seleção de filmes de diferentes épocas: um ancestral comum de 1928; quatro filmes da década de 1960; três dos anos 2000.
O Martírio de Joana d'Arc (1928), de Carl Theodor Dreyer, é um marco do que chamamos aqui de cinema de feição, sendo um dos primeiros filmes a trazer o plano próximo do rosto da atriz como enquadramento mais importante do filme. 0 sofrimento de Joana d'Arc está todo presente no rosto — sem maquiagem! — de Maria Falconetti, que a interpreta.
Em 1962 é exibido Viver a Vida, de Jean-Luc Godard, espécie de releitura de O Martírio de Joana d'Arc que trata as feições de sua protagonista, Nana, com igual importância, produzindo um retrato ensaístico bastante humano da prostituição. Repulsa ao Sexo (1965), de Roman Polanski, demonstra os sinais da loucura de sua protagonista através do que se passa por sua fisionomia. Faces (1968), de John Cassavetes, é um grande exercício de jogo cênico que elege a face como principal lugar da interpretação e do improviso. Dont Look Back (1967), de D.A. Pennebaker, é um dos principais documentários do cinema direto norte-americano. É, a um só tempo, o retrato de Bob Dylan e a construção colabo- rativa entre documentado e documentarista de uma persona — isto é, a feitura de uma feição. A observação aparentemente distanciada da câmera na mão ganha potência no rosto das pessoas em quadro.
Também um documentário, O Fim e o Princípio (2005), de Eduardo Coutinho, encontra seu caminho nas marcas e rugas nos rostos dos idosos entrevistados. A dimensão histórica dos relatos está nas vozes que se recordam do passado e nos índices da passagem do tempo em suas faces. A Criança (2005), de Jean-Pierre & Luc Dardenne, mantém-se no rosto das personagens mesmo em sua movimentação pela cidade. Cria-se um espaço que só tem significação em relação ao que passa na vida dos protagonistas. Em Cisne Negro (2010), de Darren Aranofsky, toda a transformação de Nina (Natalie Portman, que ganhou o Oscar de Melhor Atriz pelo papel) se dá na superfície de seu rosto, como expressão quase direta de seu interior.
Embora os filmes desta mostra tenham muitas diferenças — e até incompatibilidades — entre si, há um desejo comum que os une: revelar as pessoas pelos seus rostos. O plano próximo é recorrente, mas as estratégias de operação de câmera variam, e mesmo a chave de interpretação tem diferentes graus de transparência. Ora o rosto do ator é uma espécie de janela para seu interior, vertente que atinge seu grau máximo em O Martírio de Joana d'Aro, ora é uma espécie de máscara opaca para a qual o espectador precisa imaginar intenções, criar suas próprias leituras, como em Dont Look Back.
Peço que se atentem especialmente aos olhos das pessoas em cena, ao modo como os rostos são enquadrados, ao tempo que é dado para os espectadores apreciarem as feições em cada filme, Como o embate espectador-obra se dá diante desses rostos gigantescos? Talvez a resposta esteja no nariz dos atores, no modo como respiram. Talvez em seus lábios. Mais provavelmente, dispersa em toda a superfície enorme de sua face projetada.
Boas sessões!

Ricardo Miyada, CINUSP "Paulo Emílio".