O REAL ANIMADO: ANIMAÇÃO NO CINEMA DOCUMENTÁRIO


Nos últimos dez anos, ou menos, os múltiplos usos da animação na produção de cinema documentário, assim como a popularização de longas-metragens de animação mais sérios, adultos, e mesmo realistas, levou a um crescimento no número de documentários que exploram técnicas de animação, seja em sequências específicas ou no filme como um todo, bem como de inúmeros artigos e eventos dedicados a expor e analisar o papel da animação em filmes que tratam da realidade. Neste contexto, diversos críticos e teóricos de cinema têm falado sobre a emergência de um novo gênero: o documentário animado. Este subgênero particular pode ser definido como aquele que se utiliza de uma narrativa documental na qual eventos e situações extraídos da vida real são retratados na tela pelo uso de sequências animadas. Qualquer que seja o nome que dado a estes filmes, eles representam uma nova abordagem tanto para a produção documental, pela incorporação de técnicas normalmente não levadas em conta por cineastas acostumados a lidar com fatos, quanto para a animação – um gênero usualmente associado a narrativas ficcionais e temas fantásticos, que agora também está sendo visto como uma poderosa ferramenta para tratar de assuntos mais sérios e realistas.

Ainda assim, o uso de sequências animadas em narrativas fílmicas que lidam com fatos, não com ficção, não representa uma novidade. Remontando a 1918, quando Winsor McKay lançou o curta-metragem O naufrágio do Lusitânia, a trajetória do uso de animação para retratar eventos reais tem sido rica em exemplos e já gerou inúmeros híbridos de documentário-animação: filmes que usam tanto animação quanto imagens captadas ao vivo, ou apenas animação, para apresentar um assunto real. Em 1952, o cineasta escocês-canadense Norman McLaren ganhou um Oscar de melhor documentário de curta-metragem por seu filme Vizinhos. Ainda que o prêmio tenha sido questionado precisamente porque o filme dificilmente pode ser considerado um documentário, o uso por McLaren da pixilation – uma técnica de animação que torna atores reais objetos de animação em stop-motion – para tecer comentários sobre guerra, política e intolerância fornece um perfeito exemplo de como a animação poderia ser usada para retratar eventos e situações da vida real, e não apenas da fantasia. Dali por diante, apareceram muitos outros exemplos de animação sendo utilizada em narrações não fictícias, mas esta estratégia se tornou claramente mais comum nos últimos dez anos ou menos. O ponto de mudança nesta trajetória pode ter ocorrido em 2005, quando mais uma vez um documentário de animação conquistou um Oscar. O visualmente impressionante Ryan, um retrato biográfico do pioneiro da animação canadense Ryan Larkin feito pelo cineasta norte-americano Chris Landreth, venceu na categoria de melhor curta-metragem de animação e estabeleceu um padrão bastante alto para ou outros filmes de animação sobre eventos ou pessoas reais que o sucederam.

Nos anos que se seguiram ao lançamento de Ryan, foram surgindo cada vez mais curtas-metragens que utilizam animação em narrativas não-ficcionais, assim como alguns longas-metragens de animação baseados em fatos, como Valsa com Bashir, de Ari Folman, amplamente – e erroneamente – anunciado como “o primeiro documentário animado de longa-metragem”, In the realms of the unreal, de Jessica Yu, lançado alguns anos antes de Valsa..., e Persépolis, um filme de ficção de Vincent Paronnaud e Marjane Satrapi baseado em uma história em quadrinhos autobiográfica escrita por Satrapi.

Visto que o uso da animação está ganhando força dentro da produção de documentários, explicitando como pode ser rica e poderosa a contribuição do filme de animação para a representação da realidade, a 12ª Conferência Internacional do Documentário espera contribuir para a discussão e análise dessa tendência tão contemporânea da produção cinematográfica. O número crescente de filmes de animação que lidam com assuntos reais e atuais, assim como de documentários que contém sequências de animação ou são inteiramente animados, traz à luz as infinitas possibilidades de combinação destas duas técnicas de produção que podem parecer, a princípio, tão distantes. Considerando que o cinema de animação possui uma história tão antiga e complexa como a do cinema em si, é uma hipótese da Conferência que ele possa ser utilizado como base para uma reflexão sobre o poder das imagens em movimento ao descrever e comentar assuntos da vida real.

Estas múltiplas possibilidades do uso de animação no documentário podem ser perfeitamente ilustradas pelo trabalho de alguns dos convidados da Conferência. O cineasta português José Miguel Ribeiro, em seu filme Viagem a Cabo Verde, demonstra à perfeição como o desenho animado pode contribuir para expressar a complexa subjetividade de um diário pessoal ou de um relato de viagem, incorporando muitos elementos gráficos e visuais que teriam saturado um documentário de abordagem mais tradicional. Em Pequenas vozes, dirigido por Jairo Eduardo Carrillo e pelo convidado da Conferência Oscar Andrade, a animação é usada para dar vida não apenas à subjetividade das crianças envolvidas nos confrontos entre o exército e a guerrilha na Colômbia, mas também como uma maneira de tornar mais palatável à audiência os horrores da guerra – uma estratégia também adotada por Valsa com Bashir, outro filme de longa-metragem que usa animação para retratar a violência e a atrocidade de um conflito da vida real.

Além deste uso da animação para representar a subjetividade de uma pessoa ou a atmosfera de zonas de conflito, a animação parece ser também um veículo perfeito para retratar as imagens que povoam o inconsciente e as aflições e doenças da mente. Isto pode ser visto nos curtas-metragens que compõem a premiada série Animated minds, produzida pela rede de televisão britânica Channel 4 e concebida e desenvolvida pelo convidado da Conferência Andy Glynne, um premiado cineasta e psicólogo clínico. Esta série de curtas-metragens documentais de animação usa desenhos animados para ilustrar depoimentos reais de pacientes psiquiátricos, resultando em um impressionante e envolvente olhar íntimo para as mentes afetadas por transtorno bipolar, psicose, crise de pânico e transtorno obsessivo-compulsivo.

O objetivo central da 12ª Conferência Internacional do Documentário é apontar algumas das maneiras pelas quais a animação pode ser usada para problematizar crenças do senso comum a respeito de representações realistas e de representações do documentário em particular. A fim de abordar estas questões com propriedade e profundidade, a Conferência apresentará na Cinemateca Brasileira, entre os dias 28 e 30 de março, quatro mesas de debate nas quais os convidados poderão discutir suas ideias e seus trabalhos e trazer à luz as múltiplas funções que o filme de animação pode assumir quando utilizado como ferramenta na produção de documentários.

Estas mesas de debate serão acompanhadas e ilustradas por uma pequena mostra de filmes, a ser realizada na Cinemateca Brasileira e no CINUSP “Paulo Emílio”, na qual será exibida uma seleção representativa de documentários animados e filmes de animação baseados em eventos reais. Na Cinemateca, a programação de filmes estará centrada principalmente no trabalho dos convidados da Conferência, oferecendo ao público uma oportunidade de conhecer o resultado do projeto Animated minds, de Andy Glynne, bem como os documentários animados realizados por José Miguel Ribeiro e Oscar Andrade. No CINUSP, a mostra de filmes conta com apoio do Consulado Geral do Canadá em São Paulo e será um pouco mais abrangente, apresentando, além daqueles programas também exibidos na Cinemateca, outros exemplos do uso da animação em documentários e em filmes de ficção baseados em fatos reais, incluindo algumas experiências brasileiras nesse campo, assim como curtas-metragens que fizeram história por seu uso pioneiro da animação para retratar a realidade (como O naufrágio do Lusitânia, de McKay, e Vizinhos, de McLaren) e outro longa-metragem de animação que retira da realidade seu assunto, o autobiográfico Persépolis. Neste contexto, a mostra de filmes e a Conferência em si oferecerão à audiência uma oportunidade de assistir em conjunto a filmes que exemplificam as múltiplas maneiras pelas quais a animação pode ser usada para retratar eventos reais e de entender e discutir a natureza dos assim chamados documentários de animação.