O CINEMA DE PETER GREENAWAY


Em 5 de abril deste ano, o britânico Peter Greenaway, nascido no País de Gales em 1942, completou setenta anos de vida e mais de quarenta e cinco como cineasta. Artista multifacetado, trabalhou ao longo de sua carreira com pintura, ilustração, cinema, vídeo, televisão e projetos multimídia. Em outubro de 2007, Greenaway esteve pela primeira vez em São Paulo para participar do XVI Videobrasil – Festival Internacional de Arte Eletrônica, onde apresentou um de seus mais ambiciosos trabalhos: o projeto multimídia The Tulse Luper Suitcases, que reunia uma série de três longas-metragens em película, uma exposição de instalações e objetos e uma performance de live image a partir de trechos dos filmes, apresentada naquela ocasião pelo artista na rua ao lado do Sesc Avenida Paulista. Agora, Greenaway retorna ao Brasil em maio para a edição 2012 do projeto anual de conferências Fronteiras do Pensamento, que será realizado na Sala São Paulo. O britânico é o convidado que apresentará a segunda conferência da série, na terça-feira, dia 8 de maio. Aproveitando a oportunidade para celebrar o seu aniversário, comemorado recentemente, e sua volta à cidade, o CINUSP Paulo Emílio apresenta, entre os dias 2 e 18 de maio, a mostra O CINEMA DE PETER GREENAWAY, na qual o público poderá tomar contato com a faceta mais conhecida e celebrada de seu trabalho no cinema.

Após graduar-se no Walthamstow College of Art e lançar-se como pintor com uma exposição individual na Lord's Gallery, em 1964, Peter Greenaway passou a trabalhar como editor de vídeo para o Central Office of Information, órgão do governo do Reino Unido responsável por filmes informativos. Ao iniciar sua carreira como cineasta em 1966, aos 24 anos de idade, realizando curtas-metragens experimentais, trouxe sua bagagem de artista plástico e editor à nova atividade, unindo o grande apuro visual de um pintor à exploração obsessiva do absurdo, da burocracia, da montagem associativa e das múltiplas possibilidades da forma documental. O interesse em desenvolver sua carreira como cineasta, contudo, não afastou Greenaway das outras artes: ao longo dos anos, ele continuou a atuar como pintor e ilustrador, com trabalhos de destaque como os livros ilustradosThe Alphabetical Gang LionGang Lion and the Visual Flush e Tulse Luper and the Centre Walk, a série de cinquenta desenhos Water Papers, exibida na Arts 38 and Curwen Gallery em 1976, e as pinturas, desenhos e objetos relacionados a seus filmes, como o curta A Walk Through H (1978), o longa Contrato do Amor e a já mencionada série The Tulse Luper Suitcases.

Em 1980, já reconhecido como pintor, novelista, ilustrador, artista visual e cineasta experimental, Peter Greenaway lançou-se ao primeiro de seus muitos projetos ambiciosos e inusitados. Adotando a forma documental para narrar uma história de ficção, praticando de maneira pioneira o gênero que ficaria conhecido comomockumentary dois anos depois – graças ao sucesso da comédia musical sátiricaThis is Spinal Tap, de Rob Reiner – Greenaway realizou The Falls, um pseudocumentário que alia crítica social, crônica de costumes e ficção científica. Concebido originalmente como uma minissérie para a televisão britânica, The Fallsreunia, a cada capítulo, diversos segmentos independentes que apresentam de forma documental os perfis de pessoas cujo sobrenome começa pelas letras F, A, L e L, que comentam os eventos decorrentes de uma catástrofe natural à qual nunca o espectador tem acesso. O trabalho, depois lançado em vídeo como um longa-metragem de três horas de duração, é uma amostra precoce do talento e originalidade do autor e terá uma rara exibição no Brasil nesta mostra apresentada pelo CINUSP.

Reconhecido desde então como um dos cineastas europeus mais proeminentes e um dos que melhor atua na intersecção entre o cinema, as artes plásticas e as mídias eletrônicas, Greenaway segue ainda hoje em atividade, consolidando uma carreira que acumula mais de cinquenta títulos de obras audiovisuais, incluindo filmes de curta e longa-metragem, especiais para a televisão e documentários. Na mostra O CINEMA DE PETER GREENAWAY, boa parte desse longo percurso do artista como cineasta poderá ser refeita, a partir exclusivamente de seus longas-metragens mais importantes. Estão presentes na seleção da mostra desde o filme com o qual Greenaway estreou de fato no cinema comercial – o aclamado longa-metragemContrato do Amor, de 1982, que o revelou como um dos mais promissores nomes do cinema inglês daquela década – até o seu longa-metragem de ficção mais recente,Ronda da Noite, drama de 2007 sobre a vida do pintor Rembrandt e sobre a criação do seu famoso quadro homônimo. Dos quinze anos que separam um filme do outro, a mostra destaca outras oito obras incômodas e originais, viscerais e rigorosas, que mudaram para sempre o panorama do cinema britânico: ZOO – Um Z e Dois Zeros (1986), A Barriga do Arquiteto (1987), Afogando em Números (1988), O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante (1989), A Última Tempestade (1991), O Bebê Santo de Macon (1993), O Livro de Cabeceira (1996) e Oito Mulheres e Meia (1999).

Provocativo, inovador e obsessivo, Peter Greenaway pensa e repensa o fazer cinematográfico desde o início de sua jornada, incorporando à linguagem do cinema elementos das artes gráficas, do teatro, da vídeoarte, da literatura e da pintura, que se combinam em seus filmes de forma profundamente pessoal para construir um cinema de fato autoral. Percebe-se em seus filmes uma intensa vontade de experimentação narrativa e visual. Sexo, morte e arte barroca se misturam num esforço de criação intenso e provocativo. Radicado em Amsterdã desde os anos 1990, Greenaway continua a provocar. Recentemente, tem dado diversas declarações sobre a “morte do cinema” e sobre o seu desejo de “reinventar o cinema sem narrativa”. Há anos, o cineasta vem pregando a falência do cinema convencional e defendendo a sua fusão com as novas tecnologias digitais por meio da interação, da imersão total e da exploração das telas portáteis de notebooks etablets. Assim, é curioso que esta mostra que o CINUSP apresenta em sua homenagem esteja concentrada justamente no aspecto mais convencional de sua obra, em seus filmes de longa-metragem para cinema, que serão exibidos, quase todos, em seu formato “tradicional”, em película. Dos dez títulos que compõem a mostra, apenas dois não serão exibidos em 35mm: The Falls, realizado para televisão, e Ronda da Noite, que não foi lançado nos cinemas brasileiros, tendo chegando diretamente ao mercado de DVD em nosso país.

Ao optar por esse recorte e por esse formato de exibição, o CINUSP reafirma seu compromisso com a qualidade de projeção e oferece ao público a oportunidade de apreciar uma obra tão singular e importante da forma que ela foi feita para ser apreciada, em tela grande, numa sala escura, projetada a partir de rolos de película de celuloide. Se o cinema tradicional está mesmo morrendo, como afirma Greenaway, sua obra cinematográfica parece o bastante para contradizê-lo: são filmes profundamente vitais e cheios de energia, exemplos de um trabalho que jamais se estagnou e jamais buscou o comodismo e o conformismo. Com seus filmes bizarros e intensamente pessoais, que agora ganham uma rara oportunidade de serem revistos pelo público nesta retrospectiva do CINUSP Paulo Emílio, Greenaway mostrou ser possível manter-se ativo sem fazer concessões e provou que o cinema continua a ser uma forma de arte perfeitamente adaptável à experimentação e à provocação, que sempre foram sua marca.