O CINEMA DO DISTANCIAMENTO
Um objeto distante; vendo-o de longe ele não nos revela seus detalhes, é difuso. Mesmo próximo, ele pode parecer distante por não expor suas razões, por pertencer a outro mundo que não aquele presente nessa proximidade. O posicionamento que temos frente a um objeto determina seu significado. Na mostra O Cinema do Distanciamento, o CINUSP Paulo Emílio pretende investigar essas questões do objeto distante no campo do cinema. O cinema clássico sempre se pautou por o que se denominou de identificação um reconhecimento de características semelhantes entre o espectador e a personagem e pela decorrente condução imagética e narrativa do público que essa identificação provoca. O espectador, identificado com as reais personagens, se coloca na trama como elas, e reage aos fatos como se eles se passassem a ele próprio.
Na consolidação das convenções do cinema, acabou-se se definindo por essa aproximação emocional do espectador com o suporte, e a partir daí se começaram a definir as noções de condução emocional, de construção do suspense, de elaboração do clímax. Estas convenções cinematográficas criaram um padrão de transparência, dentro do qual o que a tela mostra deve ser transmitido clara e diretamente ao espectador. Para a identificação, é necessário mostrar, expor, revelar. Ao contrário dessa tendência, há outro tipo de cinema, que justamente não valoriza a aproximação entre a personagem e o espectador, mas sim o distanciamento. Nessa forma, a fruição vem não desse fluxo emocional entre a personagem e o espectador, mas justamente de seu conflito. O cinema do distanciamento oculta as razões de suas personagens, encobre suas reações, não explicita sua ambigüidade, mas a enreda num recipiente inacessível da personagem. O espectador então não sabe como seguir a personagem, não sabe o que achar de seus movimentos.
A identificação continua como elemento básico da dramaturgia, porque o distanciamento só consegue se afirmar contrapondo-se à identificação. O espectador sempre se identifica com o protagonista do filme, seja ele repugnante, vil, ou dotado de qualquer outra qualidade negativa. É o conflito entre essa identificação básica e o distanciamento provocado pelos recursos estilísticos do filme que cria a sensação de distanciamento. O espectador só se sente distante de algo que gostaria de estar próximo. Diferente de se colocar no lugar da personagem em seu contexto, o espectador se coloca em posição de observação da personagem e seu contexto. A noção de conjunto se aprofunda, e isso se refere a um deslocamento dos significados da tela. O distanciamento é um recurso potente para que o elemento das circunstâncias, do assunto, ganhe destaque em detrimento da personagem. Uma visão distanciada corresponde a uma visão mais ampla sobre aquilo que se observa, porque, distante, seu campo de visão se torna maior.
Stanley Kubrick é um diretor que explora exemplarmente essa relação entre figura e ambiente. Em todos seus filmes há a preocupação de mostrar a personagem inserida em seu espaço, e como o espaço a contamina, embora a estética de Kubrick se situe num ponto situado entre o distanciamento e a aproximação da imagem. Kubrick integra a mostra O Cinema do Distanciamento com Barry Lyndon, um filme que possui uma dramaturgia clássica, mas que estilisticamente é inovador no tratamento figura/fundo. O uso frequente do zoom conjugado a planos muito gerais cria um outro modo de configuração do espaço, um modo que se configura com um outro ritmo, como se esse ritmo definisse a noção de tempo no séc. XVIII. Aí está a inovação, uma sincronia em ritmo e espaço que busca caracterizar esse tempo histórico, e que deriva em uma mise-en-scéne invejável.
O que aqui caracterizamos como distanciamento é, portanto, um procedimento que permite que o espectador se distancie para observar as várias camadas da imagem, seja a camada da representação, seja a camada do contexto histórico, seja da alegoria, da paródia, da revisão estilística. Esse olhar mais consciente das relações entre figura e ambiente desvela esses elementos da imagem, é um olhar que por fugir da particularidade consegue fazer relações mais fortes entre o filme e o que se situa fora do filme. Essa relação de distanciamento pode ser muito criativa, e se realizar de inúmeras formas. A presente mostra preocupou-se em selecionar usos e resultados diferentes desse recurso. São Bernardo, por exemplo, é um filme que constrói seu procedimento de afastamento por meio de uma proximidade ilusória. Contrariando o princípio de que planos próximos deixam o espectador mais perto das emoções da personagem, o filme apresenta por vezes uma aproximação física que não encontra contrapartida na aproximação emocional, causando assim um estranhamento no espectador que o leva a se afastar emocionalmente da cena.
A mostra também reúne filmes que se situam num limite entre o que seria uma representação mais clássica e essa que convencionamos de chamar de representação distanciada. É caso, como já dissemos, de Barry Lyndon. É o caso também de Contos de Canterbury, filme construído com o indistinguível estilo de Pasolini, marcado sempre por uma ironia que é quase anárquica à verossimilhança. Apesar de uma decupagem que é próxima do atores, há uma subversão à dramaturgia clássica que se realiza por meio dessa adaptação do texto do séc. XIV, e resulta tão livre que o filme não parece mais se comprometer em contar uma história, mas só em expor esse divertimento indecoroso da Idade Média.
No fundo, parece que todas as personagens destes filmes guardam algum segredo que não nos revelam, um segredo oculto. Ao ver os filmes, sentimos um desejo de revelar esse segredo, essa razão que não se expõe. E aí, que é o interessante, buscamos compreender toda a estrutura do filme para tentar chegar às respostas para esse segredo, tendo assim uma visão mais consciente do todo.
Assim, com a mostra O Cinema do Distanciamento, o CINUSP Paulo Emílio convida a todos para descobrir as significações ocultas e razões que se escondem dentro dos filmes selecionados, e espera que encontrem ricos sentidos nessa busca.
Boas Sessões!