FRAGMENTOS DA HISTÓRIA: O FILME DE COMPILAÇÃO


Entre os dias 16 e 27 de Abril, o CINUSP Paulo Emílio apresenta a mostra FRAGMENTOS DA HISTÓRIA: O FILME DE COMPILAÇÃO, uma retrospectiva de alguns dos mais importantes curtas e longas-metragens realizados exclusivamente com o emprego de found footage – literalmente, “filmagem encontrada”, termo usado para descrever imagens e sons pré-existentes, captados por terceiros. Trata-se, portanto, de uma seleção de filmes cujo procedimento de criação se dá a partir da reapropriação de diversos arquivos audiovisuais para apresentar novos pontos de vista sobre determinado contexto histórico.

O título da mostra sugere, inicialmente, uma reflexão em torno do diálogo entre partícula (fragmento) e totalidade (sistema) – debate antigo dentro do pensamento estético-filosófico. Ao longo dos anos, a linguagem “pura”, independente, parece se tornar cada vez mais insuficiente para exprimir as ideias do indivíduo. Na busca por sua própria expressão, o autor gera um “conflito” entre seus meios de manifestação; ao passo em que há um tensionamento da linguagem, a mesma se “arrebenta” e seus “cacos” são prontamente assumidos. Sendo assim, a arte enquanto mimese, ou representação perfeita do mundo, deixa de ser a meta do artista, e em seu lugar valoriza-se o fragmento, antes visto como um defeito.

O fragmento nada mais é do que um sintoma do próprio pensamento contemporâneo e seu modo de operação: a construção do pensamento já não está mais associada a uma totalidade fluida, e abre, dessa forma, caminho para um discurso dinâmico, que constrói e destrói ao mesmo tempo. Consequentemente, como se debruçar sobre a História pela fluidez dos fatos se a mesma já não é mais intrínseca ao pensamento humano? A multiplicidade microcósmica se torna uma necessidade para a compreensão do homem e seu contexto, e não simplesmente uma escolha estético-discursiva.

No caso do universo audiovisual, os “filmes de compilação” – termo cunhado por Jay Leyda em seu livro Films Beget Films (1964) – inserem-se nessa discussão à medida que os meios de produção de imagens e sons se tornam cada vez mais acessíveis, difundidos e popularizados, e o acesso às fontes fílmicas originais e acervos audiovisuais aumenta em escala exponencial. Sendo assim, a justaposição de materiais distintos se torna uma prática que favorece o pensamento do autor. Dentro desse processo, é possível notar a recorrência do uso de found footage como procedimento de construção discursiva. Ao apoiar-se no arquivo audiovisual de determinado contexto histórico, o filme de compilação pode apresentar um novo olhar sobre o período, não só porque a imagem tem forte poder ilustrativo, mas também porque o artista adquire a liberdade de alterar sua função original para dar-lhe novos significados. Filmes caseiros, arquivos institucionais, registros de câmeras de segurança, entre outras fontes, fornecem a matéria-prima que viabiliza a materialização de um novo discurso.

O found footage, ou material de arquivo, presta-se aos mais diversos usos e autores das mais diversas formas Trata-se, portanto, de uma técnica, um procedimento, mais do que um gênero específico, apesar de ser normalmente vinculado às artes plásticas, à vídeo-arte, ao filme-ensaio e ao documentário. Os primeiros filmes de compilação datam do início do século XX e sua matéria-prima era proveniente de cinejornais e reportagens. A pioneira nesse tipo de criação foi a ucraniana Esther Schub, importante realizadora do cinema soviético. Em 1927, Schub dirigiu o documentário The Fall of the Romanov Dynasty, realizado a partir dos princípios de montagem desenvolvidos pelo construtivismo soviético de Eisenstein e Vertov. A obra originou uma trilogia, completada pelos filmes The Great Road e Lev Tolstoy and the Russia of Nicolai II, também realizados pelo procedimento de reestruturação e resignificação de imagens provenientes de cinejornais. Ao longo dos anos e décadas seguintes, inúmeros têm sido os usos de material de arquivo em filmes de caráter documental ou ensaístico. Nesta última categoria, nenhum filme teve maior impacto ou importância do que o curta-metragem Noite e Neblina (1955), de Alain Resnais. Combinando imagens de arquivo dos campos de concentração nazistas a filmagens realizadas mais de dez anos depois nos mesmos locais, agora desabitados e cobertos de vegetação, o filme proporciona uma reflexão profunda sobre vida e morte, natureza e civilização, guerra e paz, a partir de um mínimo de recursos, expondo à perfeição todo o imenso potencial da criação a partir de material audiovisual pré-existente. Extrapolando o registro meramente documental, o filme se constitui em autêntico ensaio audiovisual, um gênero em que sempre esteve particularmente presente o emprego do found footage.

Desde então, o filme de compilação se desenvolveu sempre no sentido de desafiar os limites da linguagem cinematográfica tradicional e de sua composição por fragmentos, tornando discussões latentes passíveis de uma abordagem audiovisual tão complexa quanto sua temática. É assim, por exemplo, que um filme como O Fundo do Ar É Vermelho (1977), de Chris Marker, que se propõe a apresentar a história da esquerda mundial, consegue apresentar uma reflexão livre das armadilhas de um pensamento dualista, comumente encontrado em discursos de cunho político. A multiplicidade de materiais usados no filme possibilita uma abordagem altamente complexa, uma vez que forma e conteúdo estão plenamente interligados. Um verdadeiro épico audiovisual, o filme é um dos destaques desta mostra, dividido em duas partes: As mãos frágeis e As mãos cortadas.

Outros exemplos de resignificação do material de arquivo como potência reflexiva podem ser encontrados no trabalho do diretor húngaro Péter Forgács. Seu filme O Êxodo do Danúbio (1998), também incluído nesta mostra, é um diário de viagem que nos apresenta o êxodo dos judeus da Eslováquia pouco antes da Segunda Guerra Mundial. Divididos em dois barcos, 900 judeus de origem eslovaca e austríaca tentam alcançar o Mar Negro pelo rio Danúbio, para depois seguir para a Palestina. Forgács utiliza e reinterpreta imagens de situações cotidianas – passageiros rezando, dormindo, casando-se, etc. – captadas de forma amadora por Nándor Andrásovits, capitão de um dos barcos, reconstruindo de forma inovadora o dia-a-dia das pessoas envolvidas no episódio.

Também merecem atenção especial os trabalhos da portuguesa Susana de Sousa Dias, cineasta, artista plástica, professora da Faculdade de Belas-Artes de Lisboa e especialista na realização de filmes de compilação. Suas mais recentes obras, Natureza Morta (2005) e 48 (2009), fazem uma reflexão sobre o período salazarista em Portugal – anos marcados por profunda repressão política – a partir de materiais de arquivo da época. Natureza Morta não recorre à palavra: o intuito da obra é o desvelamento da própria imagem, enfatizando a polivalência e opacidade que ela pode carregar (mesmo recurso aplicado pelo holandês Vincent Monnikendam em Mãe Dao, outro filme presente nesta mostra). Já o filme 48 tem como base o relato (a palavra), sobreposto a imagens tiradas dos arquivos fotográficos da PIDE, a temida polícia secreta da ditadura salazarista. A cineasta utiliza fotos de presos políticos tiradas na própria prisão e, à medida que tenta compreender as histórias por trás dessas imagens, faz uma reflexão sobre o contexto histórico em que foram produzidas.

Todos os filmes incluídos na programação desta mostra partilham esse olhar reflexivo em direção ao passado, mas de forma alguma representam uma amostragem exaustiva dos usos a que se presta o found footage. Com efeito, conforme mencionado anteriormente, o procedimento não se faz presente exclusivamente em um determinado gênero, submetendo-se às mais diversas aplicações em espectros do universo audiovisual tão distantes quanto o documentário histórico, a vídeo-arte abstrata e a paródia. Atualmente, em vista da disseminação do acesso às fontes de imagens e sons pré-gravados e dos meios de manipulação desse acervo, a produção de filmes criados a partir de outros filmes se apresenta mais multifacetada do que nunca. Embora ainda seja mais comum o emprego de materiais de arquivo em filmes documentais e ensaísticos – como é o caso daqueles que compõem esta mostra – hoje são inúmeros os casos de filmes de ficção, vídeo-instalações videoclipes, pseudodocumentários e toda uma gama de remixes digitais disponíveis na internet que são criados exclusivamente a partir do found footage. Em benefício da concisão e da consistência, esta diversidade não se reflete em nossa programação, que se concentra em documentários e filmes ensaísticos justamente para manter o foco na reflexão sobre a História que o uso de found footage pode ensejar.

Vale notar, ainda, que também no horizonte da produção audiovisual brasileira o uso do found footage como procedimento começa a se afirmar como uma possibilidade criativa, ainda que, neste primeiro momento, quase exclusivamente no campo do cinema documental. É por esse motivo que os filmes Nós que Aqui Estamos por Vós Esperamos (1998), de Marcelo Masagão, uma autointitulada “biografia do século XX”, e 35 – O Assalto ao Poder (2002), de Eduardo Escorel, um retrato da Intentona Comunista no Brasil durante a era Vargas, ambos realizados a partir da remontagem de materiais de arquivo, também fazem parte da seleção desta mostra. Por fim, complementando a sua programação brasileira, a mostra inclui ainda uma atração especial que busca projetar no presente a discussão sobre a História que o evento tem por objetivo promover. Trata-se de um encontro do público com o documentarista Eduardo Coutinho, realizador de obras-primas como Cabra Marcado para Morrer, Edifício Master e Jogo de Cena, que desde 2010 vem desenvolvendo um projeto que explora os efeitos da remontagem de imagens e sons extraídos de transmissões televisivas. Em debate a ser realizado no CINUSP no dia 26 de Abril, às 19h, Coutinho discutirá a relação entre o documentário, a televisão e o cinema de compilação, ilustrando seu depoimento com alguns trechos extraídos de seus experimentos com a remontagem de programas televisivos. Com esse encontro, a mostra FRAGMENTOS DA HISTÓRIA encerra-se em uma chave que aponta os rumos atuais e futuros do emprego de imagens e sons de arquivo na promoção de uma reflexão sobre a História e o seu registro audiovisual.