2ª MOSTRA ANIME


Em uma primeira acepção, anime (pronuncia-se “animê”) é a palavra japonesa que traduz “animação” ou “desenho animado”, seja ele de qualquer gênero ou formato, produzido em qualquer parte do mundo. Na interpretação ocidental mais corrente, porém, o termo é usado para designar apenas desenhos animados produzidos no Japão, que correspondem justamente a uma das porções mais prolíficas e relevantes da produção audiovisual nipônica, muito popular em todo o mundo. Paralelamente, vem se tornando cada vez mais comum o uso da palavra anime como uma designação de gênero, ou de um subgênero específico do cinema de animação. Nesse sentido, anime seria o estilo de animação desenvolvido e popularizado no Japão a partir dos anos 1960 e do trabalho marcante do cartunista Osamu Tezuka, caracterizado por um visual bastante colorido e detalhista, com ênfase nas expressões faciais e, muitas vezes, pela presença de temas direcionados ao público adulto – em oposição à animação ocidental, que esteve durante décadas associada exclusivamente ao universo infanto-juvenil. O estilo visual da animação japonesa, herdado dos mangás (como são conhecidas as histórias em quadrinhos daquele país), é facilmente reconhecível nos traços e caracterizações dos personagens, marcados pelas expressões exageradas, os olhos grandes, as gotas e os chifres que surgem na cabeça dos personagens expressando sentimentos de constrangimento e raiva. Essas características distintivas, entretanto, têm sido cada vez menos determinantes, uma vez que tanto os temas adultos quanto a identidade visual típicos do anime já se fazem presentes em filmes produzidos em outros países, ao passo que as animações japonesas tem se diversificado de forma a não mais se restringir a esses traços tradicionais. Dessa forma, torna-se no mínimo controverso limitar o uso do termo anime a um gênero ou estilo específico, uma vez que a produção japonesa de desenhos animados é extremamente variada tanto em matéria de forma quanto de conteúdo, com a aplicação das mais diversas técnicas a temas e histórias dos mais diversos gêneros, do drama sério ao filme de horror, da fantasia infantil à comédia erótica.

Alinhando-se à corrente que toma a palavra anime “ao pé da letra”, como expressão que designa toda a produção audiovisual japonesa de animação, independentemente de gênero, estilo ou formato, o CINUSP Paulo Emílio, dando seqüência à bem-sucedida MOSTRA ANIME, realizada em julho e agosto de 2011, apresenta, com apoio da Fundação Japão, a 2ª MOSTRA ANIME, reafirmando o espaço em sua programação anual para a celebração da longa e fértil tradição do desenho animado nipônico, investigando esse universo que ainda atrai tanta gente, mesmo no ocidente, e que se faz presente no imaginário de toda uma geração que cresceu rodeada por mangás, animes, videogames e bonecos desses desenhos animados japoneses.

Um dos destaques desta 2ª MOSTRA ANIME é o rigoroso trabalho de Makoto Shinkai, que pode ser conferido nos premiados longas-metragens 5 Centímetros Por Segundo e O Lugar Prometido em Nossa Juventude. O tom predominantemente introspectivo dos filmes, auxiliado por belas trilhas e uma devoção impressionante aos mínimos detalhes, nas paisagens, cores, luzes e irregularidades, dá forma a um universo bastante realista, permeado pela melancolia e solidão de ambas as histórias, de transformação e separação – feridas de um Japão ainda mal cicatrizado da Segunda Grande Guerra.

Do vencedor do Oscar de Melhor Animação de Longa-metragem Hayao Miyazaki (A Viagem de Chihiro), a programação inclui exemplos de sua produção das décadas de 1980 e 1990, ainda pouco vista no Brasil, ofuscada muitas vezes pelo sucesso dos seus filmes mais recentes. Em Nausicaä do Vale do Vento, o ambientalismo característico do diretor faz-se mote principal. Bastante conceituado, o filme acabou sendo o responsável pela criação do famoso estúdio Ghibli, dado seu estrondoso sucesso à época. Laputa: O Castelo no Céu, outro filme incluído na mostra, é a primeira realização do estúdio. As máquinas voadoras, outra obsessão do diretor, assim como o céu, ganham foco tanto aqui quanto em Porco Rosso e O Serviço de Entregas de Kiki, que também fazem parte da programação. Ainda de Miyazaki, a mostra exibe também Princesa Mononoke – um de seus maiores sucessos e considerado por muitos como o seu melhor filme – e Meu Vizinho Totoro, cujo protagonista, um bicho gordo e fofo, guardião da floresta, continua estampando inúmeros produtos licenciados e encantando crianças e adultos desde seu lançamento. Em todos os filmes, reconhecem-se traços característicos do “estilo Miyazaki”: garotas como heroínas, criaturas fantásticas, comunidades cooperativas, florestas, perseguições e o choque entre o ultrarrealismo e o surreal, além de toda a qualidade técnica da animação, dos grandes cenários e paisagens, da trilha sonora de Joe Hisaishi e dos roteiros intrigantes e cheios de mistério, que exploram simultaneamente camadas de significação adultas e infantis. Tudo concretizado via um perfeccionismo admirável. Assim é o universo de Miyazaki, um mundo no qual a magia é indissociável da vida.

A 2ª MOSTRA ANIME também retoma o trabalho de outros dois animadores apresentados na primeira edição, que certamente figuram entre os mais importantes dos últimos anos. Falecido em agosto de 2010, aos 46 anos, Satoshi Kon (Paprika, Perfect Blue, Millennium Actress) é o diretor do tragicômico Tokyo Godfathers, que gira em torno das crises de três mendigos: uma ex-drag queen, um antigo ciclista alcoólatra e uma adolescente fugitiva, forçados a cuidar de um bebê que encontram na rua. Satoshi Kon também é o roteirista de um dos capítulos de Memories, filme dividido em três partes que conta com a colaboração de outro nome fundamental do anime: o conceituado Katsuhiro Otomo, diretor do clássico Akira, também exibido pelo CINUSP em 2011.

A ficção-científica, um dos subgêneros mais populares do anime, cuja expansão acompanha e reflete a evolução tecnológica dos dias atuais, principalmente na área da computação gráfica, também marca presença forte na programação desta 2ª MOSTRA ANIME. Evangelion 1.11 e Evangelion 2.22 são dois longas-metragens de uma tetralogia baseada no mangá e na série de televisão Neon Genesis Evangelion, um dos melhores e mais importantes seriados de animação de todos os tempos. Os filmes impressionam não só pelo caráter apocalíptico – Deus envia “anjos” gigantes para dizimar a raça humana –, mas também pelo primor e qualidade técnica. A saga pertence a uma vertente denominada “mecha”, caracterizada por tramas que giram em torno de robôs gigantes e suas batalhas. Contrapondo-se a esse universo de imagens e elementos computadorizados, Jin-Roh, filme baseado em um mangá homônimo de Mamuro Oshii (Ghost in the Shell), trata das crises existenciais de um soldado cercado pelo terrorismo, revoltas populares e organizações paramilitares de um mundo totalitário e claustrofóbico, em que a Alemanha nazista venceu a Segunda Guerra Mundial. Um dos animes mais sérios e sombrios da mostra, Jin-Roh destaca-se pelo seu impressionante uso do processo de animação mais tradicional, de desenhos feitos à mão, que nada deixa a desejar em matéria de rigor técnico ao ser comparado às animações computadorizadas.

Técnicas ainda mais “analógicas” e “artesanais” de animação ganham destaque no programa especial de curtas-metragens composto por obras de dois animadores importantes e ainda desconhecidos do grande público: Kihachiro Kawamoto e Naoyuki Tsuji. Incluída para trazer à mostra também uma perspectiva histórica e menos convencional da animação japonesa, esta seleção de curtas reúne filmes bem diferentes daqueles que compõem o restante da programação. A primeira diferença diz respeito às técnicas empregadas. Kawamoto faz um uso bastante particular da técnica de animação conhecida como stop-motion, valendo-se de bonecos e objetos inspirados no tradicional teatro de marionetes japonês, o chamado Bunraku (em que as figuras são manipuladas em tempo real por homens vestidos de preto). Aluno do famoso animador tcheco Ji?í Trnka, mestre do stop-motion e da animação de bonecos, Kawamoto desenvolve um trabalho marcado pela fusão da tradição do stop-motion do Leste Europeu com o Bunraku e outros elementos da cultura tradicional japonesa, como o budismo, as antigas lendas, o Haikai, o teatro e o Kabuki. Naoyuki Tsuji, por sua vez, anima seus desenhos de traço simples feitos à mão com carvão vegetal. Utilizando uma única folha de papel, ele trabalha suas imagens apagando-as e as redesenhando, deixando resquícios das cenas anteriores sob as novas, conferindo assim um aspecto “sujo” e incomum à sua produção. Sua técnica singular faz emergir de seus filmes uma cosmogonia organicamente sombria e perturbadora, apesar da aparência infantil.

Tanto Kawamoto quanto Tsuji apostam em uma estética muito mais radical, incomum e sombria do que a dos animes “tradicionais”, ampliando o leque de estilos representados nesta segunda edição da MOSTRA ANIME.