FRAGILIDADE E RESISTÊNCIA: UMA INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO CONTEMPORÂNEO ATRAVÉS DO CINEMA ESPANHOL


Apresentando-se simultaneamente como mostra de cinema, aberta a todos os interessados, e curso de extensão e difusão, organizado em conjunto com o Grupo de Estética do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP, coordenado pelo professor Dr. Marco Aurélio Werle, o programa FRAGILIDADE E RESISTÊNCIA: UMA INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO CONTEMPORÂNEO ATRAVÉS DO CINEMA ESPANHOL busca fornecer uma introdução aos problemas do pensamento contemporâneo por meio da análise de uma série de filmes espanhóis de reconhecido valor artístico, dirigidos por cineastas de renome como Luis Buñuel, Pedro Almodóvar, Víctor Erice, Luis García Berlanga, Alejandro Amenábar e Julio Medem. Intensificando o estudo da fértil área de interseção entre estética e filosofia, o curso e a mostra, ao mesmo tempo, oferecem uma visão geral da atual sociedade espanhola. A programação, portanto, é direcionada a estudantes de filosofia, letras e espanhol, mas também ao público em geral interessado nos problemas e propostas do pensamento ocidental contemporâneo e no poder de criação e estética do cinema espanhol.

Sob a coordenação do professor David Camello, o curso não se propõe a interpretar filosoficamente uma série de filmes. Ao invés disso, tem a intenção de reconhecer as ressonâncias e os ecos que ocorrem entre áreas de reflexão e trabalho que, embora autônomas, também têm interesses comuns. Nos filmes selecionados, podemos perceber como se configura o indivíduo contemporâneo em sua tensão com os outros, com o poder, consigo mesmo etc. Trata-se, portanto, de buscar reconhecer por meio dos filmes o sujeito contemporâneo, cuja concepção, no horizonte do pensamento ocidental, não é unitária e nem atômica. Como disse Rosi Braidotti, trata-se de um sujeito dividido, inacabado, ligado, contraditório, rizomático, nômade. Um sujeito que efetivamente perdeu sua unidade, mas, no entanto, é suscetível, em sua fragmentação e multiplicidade, de ser estudado de acordo com os diversos modos de sujeição (assujettissement) em uma sociedade.

Encontramos nos filmes propostos personagens que respondem a essa sujeição arriscando-se contra o medo e a paralisia de um modelo de pensamento e de sociedade fechada e auto-suficiente, que aspira à segurança a qualquer preço e faz do excluído uma ameaça (como se vê, mais do que em qualquer outro, em Zona do Crime). Esses personagens, porém, também se entregam com humildade e rigor à sua tarefa (com em O Sol do Marmelo).

Este curso está interessado no espaço de conjugação e tensão entre a experiência de nossos limites (nossa evidente fragilidade) e um desejo de não renúncia ante o aparentemente fechado (nossa efetiva resistência). Em certa medida, cada um de nós tem muito a ver com os protagonistas dos filmes e com as situações a que devem responder, que nem sempre são fáceis. Talvez como César, o jovem empresário desconcertado de Preso na Escuridão, cada um de nós enfrente a insegurança de ser reconhecido pelo outro e de reconhecer-se a si próprio a cada dia, ou seja, o terror de ver e ostentar nosso rosto refletido nos olhos dos outros.

Às vezes, nós precisamos da absoluta solidariedade e aliança com nossos colegas ante a tirania do poder (como ocorre em O Verdugo), ou incorporamos estranhos modos de ser e identidades para nos sentirmos aceitos, ou nos tornamos atores de uma tragédia inesperada e aleatória (como a de Cela 211), que altera nosso próprio ser e nosso corpo a ponto de transfigurá-lo (como em A Pele que Habito). Muitas vezes, como o personagem Angel, do filme Terra, encontramo-nos desdobrados em diálogos com uma voz interior que nos desafia.

“Mas a fragilidade não é a mesma coisa do que a debilidade. Essa fragilidade, que é ao mesmo tempo o efeito da superfície da nossa própria condição, exige uma grande integridade para poder ser assumida. É uma excelência de seres humanos, com capacidade de reconhecer as limitações e de não se deixar possuir pela arrogância. É a potência de se sentir num âmbito definido, com possibilidades concretas. E assumi-lo não impede a determinação da busca por transformá-las. Sentir-se frágil, saber-se frágil não é nenhuma debilidade. Tem que ser muito corajoso para aceitá-lo. Não reconhecê-lo é a maior das impotências, a de não ser consciente de quem somos.” (GABILONDO, Ángel. La Sensibilidad en Suspenso. El País, 10 de julho de 2012)

Na verdade, homens ou mulheres, hoje somos seres extremamente complexos e estranhos. E a questão não é somente sabermos quem somos, mas sim em quem queremos nos converter. Como mostra o filme A Pele que Habito, vivemos em um corpo que é social, onde se acomodam modos de subjetivação mediados pela sociedade. E vivemos também em um corpo dos afetos, desejos e medos, que se originam, em muitas ocasiões, como uma reação à imposição violenta desse mesmo corpo social. Por isso, o corpo não é apenas uma mera superfície do registro dos poderes sociais, é também a origem de batalhas e revoltas, o ponto de partida da construção de si mesmo, quando comparecem os desejos e os anseios como as forças motrizes de nossa metamorfose. Assim, por exemplo, nas cenas de violência entre Antonio e Pilar, em Leve Meus Olhos, Pilar sustenta o solilóquio elétrico de Antonio, angustiado e aterrado, sabendo que, para encerrar a cena que ele mesmo forçou, Antonio substituirá os palavrões por uma agressão física ao corpo ou aos objetos que ela ama. Mas Pilar, no outro lado, deixa de sentir a ferida do amor uma vez que descobre, a partir das cenas mitológicas dos quadros de El Greco, outra imagem possível do amor.

“Embora invoque focos de resistência, de onde vêm tais focos? Ele precisará, pois, de muito tempo para achar uma solução, já que de fato trata-se de criá-la. Será que se pode dizer que essa nova dimensão seja a do sujeito? Foucault não emprega a palavra sujeito como pessoa ou forma de identidade, mas os termos “subjetivação”, no sentido de processo, e “Si”, no sentido de relação (relação a si). E do que se trata? Trata-se de uma relação da força consigo (ao passo que o poder era a relação da força com outras forças), trata-se de uma “dobra” da força. Segundo a maneira de dobra da linha de força, trata-se da constituição de modos de existência, ou da invenção de possibilidades de vida que também dizem respeito à morte, às nossas relações com a morte: não a existência como sujeito, mas como obra de arte. Trata-se de inventar modos de existência, segundo regras facultativas, capazes de resistir ao poder bem como se furtar ao saber, mesmo se o saber tenta penetrá-los e o poder tenta apropriar-se deles. Mais os modos de existência ou possibilidades de vida não cessam de se recriar, e surgem novos.” (DELEUZE, Gilles. “Rachar as coisas, rachar as palavras”. In: Conversações: 1972-1990. São Paulo, Editora 34, 1992. pp.105-117, p.116)

Resistir significa, nesta medida, exercer poder sobre si, autoafeitar-se, fazer da existência uma arte de produção e de criação de si mesmo. Em contextos teóricos e políticos que são apresentados como inexoráveis, este curso reivindica a ação de pensar, pensar em ação: começamos a suspeitar com muito boas razões que nós próprios somos um personagem a ser configurado dentro do panorama geral da história em que vivemos.

Pela realização deste curso, desejamos, por fim, agradecer a confiança, a generosidade e o impulso do professor Dr. Marco Aurélio Werle, que a tornou possível. Reconhecemos singularmente a colaboração de Juan Lozano, consultor de projetos e programação do CCE – Centro Cultural de España en São Paulo e da AECID – Agencia Española de Cooperación Internacional para el Desarrollo, e de Luis Fernando Cardona, bibliotecário do Instituto Cervantes de São Paulo, no auxílio à organização dessa mostra. Agradecemos ainda o apoio institucional da FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.

David Camello, Estrella Maestre e Rocío Alonso