MONSTRUMANIDADE


O que é um monstro? É tudo aquilo que se opõe à Humanidade? É o Mal extremo materializado em criaturas gigantes, deformadas e com poder absoluto de destruição? O que ocorre quando a criatura é o próprio homem?

Ao longo da História e das distintas sociedades, os monstros representaram os mais diferentes medos. Foram o mecanismo através do qual os homens corporificaram seus pesadelos mais profundos. Ao combatê-los, os homens buscavam, de alguma forma, impor ordem a um universo caótico, a uma natureza gigantesca e sem controle. Para algumas mitologias, o que foge ao controle deve ser exterminado. Em outras culturas, o monstro é o signo anunciador e agente direto de uma revolução na ordem do mundo e da própria história.A maior parte dos atributos da monstruosidade está em oposição àquilo que definimos como condição humana. Em outras palavras, para saber a real dimensão dos monstros modernos, seria necessário ter uma definição mais precisa de Humanidade, com todos os seus contornos e derivações. Essa determinação, no entanto, está cada vez mais difusa. Por um lado, a competição do mundo do trabalho nos desumaniza; por outro, os questionamentos advindos das ciências humanas (também chamadas Humanidades), ou mesmo das ciências físicas e biológicas, colocam constantemente em cheque os conceitos que tínhamos em relação a nós mesmos.

Nesse contexto, buscando questionar o conceito mais usual de "monstruosidade", apresentando o que há de humano no comportamento de criaturas monstruosas e o que há de monstruoso no comportamento dos humanos, o CINUSP Paulo Emílio apresenta a mostra de cinema MONSTRUMANIDADE, reunindo longas-metragens de diversos gêneros (drama, ficção científica, terror, fantasia) que abordam esses conceitos, personagens e situações.Aparentemente muito diferentes entre si, os filmes desta mostra têm em comum a transgressão e subversão dos conceitos de monstruosidade e humanidade. Nesses filmes, não podemos afirmar categoricamente qual a natureza de cada personagem, mesmo quando seu corpo apresenta-se monstruosamente deformado, como em O Homem Elefante, de David Lynch, ou no clássico Monstros, de Tod Browning. O filme de Lynch conta a história de John Merrick, um inglês da era vitoriana, portador de uma grave doença que torna a maior parte de seu corpo deformado. Pela sua aparência, é considerado um deficiente mental, explorado e constantemente espancado em um circo de aberrações. No entanto, John é um homem inteligente e de grande sensibilidade e, quando é libertado do circo de horrores, percebe que a sociedade na qual transita é só uma jaula um pouco maior. As pessoas negam-lhe a existência enquanto homem, continuam a vilipendiá-lo, afastando-se e observando-o à distância, ainda como uma atração de circo, como um animal.

À época do lançamento de Monstros, na década de 1930, Tod Browning surpreendeu e chocou a todos pelos atores com os quais trabalhou. Sem apelo sensacionalista ou desprezo pelos personagens, contando uma história que se passava em um circo de horrores, Browning dirigiu reais atrações destas feiras, como o Homem-Dorso, que rasteja pelo chão, a Mulher Barbada, a mulher que come com os pés porque não possui braços, as irmãs siamesas, os muitos anões e outros tantos “freaks”, título original em inglês do filme, que significa aberração, monstruosidade. No entanto, os verdadeiros monstros deste filme não são essas figuras, e sim duas pessoas de aparência convencional, a trapezista Cleópatra e seu amante musculoso Hércules, que planejam matar o anão Hans para se apoderar de sua fortuna.

Em A Mosca, o diretor David Cronenberg faz uma denúncia dos poderes perversos da ciência, capaz de gerar monstruosidades a partir de pequenos acasos não previstos, como uma simples mosca. No filme, o drama e o horror surgem da mutação do cientista Seth Brundle em uma criatura grotesca, síntese jamais vista entre o corpo humano e o de uma mosca. Após uma decepção amorosa, o cientista fica bêbado, despe-se e entra no teletransportador que vinha desenvolvendo. Sem que Brundle perceba, entra com ele na máquina também uma mosca, cuja corpo acaba se integrando ao seu. Aos poucos, a parte inseto domina e destrói a parte humana de Brundle, decompondo-o física e mentalmente. Ainda que sua aparência torne-se cada vez mais grotesca, o horror se afirma pela transformação do modo pelo qual passa a ver o mundo e a agir sobre ele.

Se no filme de Cronenberg o cientista é um homem solitário e sem amigos, que habita um laboratório afastado e escuro, Roman Polanski com O Bebê de Rosemary, traz o horror para fora do terreno das sombras. O pesadelo sofrido por Rosemary, que se vê envolvida em uma conspiração de bruxos que querem roubar o filho que traz no ventre, ocorre durante o dia, em meio a donas de casa de um prédio de luxo em Nova Iorque. O filme destrói a sagrada linha entre fantasia e realidade e nos afunda em uma narrativa ambígua povoada por monstros que nunca sabemos se são reais ou imaginários.Nesse sentido, Mistérios da Carne, de Gregg Araki, é igualmente nebuloso quanto à materialidade do monstro que teria abduzido um garoto quando criança. No filme, acompanhamos dois adolescentes que interpretam e elaboram fabulações diferentes para o abuso sexual sofrido na infância. Um deles diz ter vivido uma espécie de história romântica, descrita com certo lirismo e maravilhamento por seu olhar infantil. O outro diz ter sido abusado por alienígenas e passa a conduzir sua vida na busca por outros que compartilham dessa experiência aterrorizante e transformadora. Suas trajetórias serão bastante diferentes mas igualmente intensas e belas. Eles serão conduzidos para o mesmo ponto no qual precisarão superar a dor para enfrentar o evento-trauma.

Tomas Alfredson subverte o halo de inocência construído em torno da infância em Deixa Ela Entrar ao apresentar Eli, uma vampira de 12 anos que sofre com o fardo inerente ao seu destino de ter que exterminar para continuar vivendo. Uma existência eterna marcada pela brutalidade e violência, que a mantém na condição de pária e transforma o ser humano que se aproxima dela em um potencial criminoso. O filme narra a história de seu relacionamento com Oskar, também de 12 anos, que tem dificuldades de se relacionar com as pessoas e sofre perseguição por parte de seus colegas de escola. Há uma certa delicadeza e lirismo nascidos dessa relação entre os dois que é acentuada pela cinematografia de Alfredson.

Como em outros filmes de sua autoria, Michael Haneke também subverte a imagem da infância ao explorar a gênese da monstruosidade dos regimes totalitários em A Fita Branca. Pouco antes do início da Primeira Guerra Mundial, em uma pequena cidade na Alemanha, situações extraordinárias e violentas de autoria desconhecida começam a ocorrer, deixando a população com medo. O título se refere à fita que era amarrada às crianças na cidade para que sempre se lembrassem de seu compromisso com a pureza. Quando o professor do coro de jovens investiga as ocorrências, acaba por descobrir que, apesar da fita continuar sendo amarrada, a falaciosa pureza se perdeu por completo. É o mal surgido de forma incontrolável de uma organização social opressiva e violenta.

Finalizando o quadro da mostra, M: O Vampiro de Düsseldorf, de Fritz Lang, também penetra nas profundezas da alma coletiva. No final dos anos 1920, um assassino de crianças aterroriza uma cidade alemã. Pressionada pela opinião pública, a polícia sai à procura do infanticida, espalhando centenas de agentes por toda a cidade. Para impedir que esse excesso de policiais atrapalhe suas atividades, os criminosos locais também partem em busca do assassino, levando-o a um julgamento no qual decidirão o seu destino. Como curiosidade, vale dizer que o filme não é sobre um vampiro e tampouco se passa em Düsseldorf. Foi usado esse título por conta das semelhanças entre o vilão do filme e Peter Kürten, um “serial killer” alemão que era conhecido como “o vampiro de Düsseldorf”. Trata-se, portanto, de uma estratégia comercial utilizada em alguns países que julgaram o título M insuficiente para atrair o público. Inicialmente, o título que Lang queria era “Um Assassino Entre Nós”, recusado pela censura alemã. No entanto, certamente seria um título mais adequado, uma vez que a monstruosidade no filme não está circunscrita ao personagem Hans Beckert, mas a toda sociedade. Nesse sentido, é emblemática a cena da corte mafiosa improvisada clamando pela morte do assassino com suas próprias mãos.

Com esses filmes, a mostra MONSTRUMANIDADE propõe uma reflexão sobre as fronteiras que nos tornam humanos e sobre como elas podem ser transgredidas e materializadas nessas criaturas que chamamos monstros.

Boas sessões!