O CINEMA DE LOUIS MALLE: VERSÁTIL E POLÊMICO


Em homenagem aos 80 anos de seu nascimento, celebrados no dia 30 de outubro último, o CINUSP Paulo Emílio, em parceria com o Centro Cultural Banco do Brasil, apresenta uma ampla retrospectiva do cineasta francês Louis Malle, um dos mais populares e influentes de sua geração e um dos poucos a conquistar sucesso também nos Estados Unidos, sem jamais fazer concessões comerciais.

Louis Malle começou sua carreira em 1956, trabalhando como codiretor e cameraman do documentário O Mundo do Silêncio, do célebre oceanógrafo francês Jacques Cousteau, que não apenas ganhou o Oscar de Melhor Documentário como foi também o primeiro filme do gênero a conquistar a Palma de Ouro no Festival de Cannes. No mesmo ano, foi assistente de direção de Robert Bresson no filme Um Condenado à Morte Escapou, cujo estilo naturalista viria a influenciar os seus primeiros filmes. Em 1957, quando tinha apenas 24 anos de idade, Malle estreou como diretor de longas-metragens com Ascensor Para o Cadafalso, um thriller de grande sucesso que contava com trilha sonora original de Miles Davis – ele próprio um enfant terrible em sua arte (o jazz) – e trazia como protagonista a jovem Jeanne Moreau, que viria a se tornar uma das mais famosas e prestigiadas atrizes da história do cinema francês, voltando a trabalhar com o diretor em outras três ocasiões em menos de dez anos (em Os Amantes, Trinta Anos Esta Noite e Viva Maria!).

Ao falecer em decorrência de um linfoma aos 63 anos de idade, em sua casa em Beverly Hills, Califórnia, no Dia de Ação de Graças de 1995, Malle deixou como legado uma impressionante obra cinematográfica, na qual se destacam clássicos inesquecíveis como Os Amantes, Ascensor Para o Cadafalso, Trinta Anos Esta Noite, O Sopro no Coração, Pretty Baby, Atlantic City, Zazie no Metrô e Lacombe Lucien. Ao longo de uma carreira de quase quarenta anos marcada pela controvérsia, pela diversidade de gêneros e pela delicadeza do olhar, e apesar de ser considerado um legítimo precursor da Nouvelle Vague, Louis Malle nunca foi tomado propriamente como um diretor “autoral” e nunca foi enquadrado em determinada escola estilística ou corrente estética. E isso por uma simples razão: sua obra cinematográfica é tão diversificada em termos de gêneros e estilos que simplesmente não cabe em um movimento específico ou categoria definida. Seus filmes incluem documentários e ficções e foram realizados não só na França, mas também na Índia e nos Estados Unidos. São, acima de tudo, universais. E demonstram uma versatilidade que lhe permitiu imprimir a mesma força e talento em comédias alucinadas, fantasias surreais, suspenses policiais e dramas existencialistas. Se há uma marca em comum ao trabalho de Louis Malle como cineasta, portanto, esta é, em primeira instância, justamente a sua versatilidade.

Poucos cineastas conseguiram reunir um conjunto de realizações tão diverso e, ainda assim, tão consistente. Dentre os pouco mais de trinta filmes que Malle dirigiu, contam-se exemplos dos mais variados gêneros, estilos e abordagens. Para além dos dramas íntimos que são marca de sua carreira e único gênero recorrente em sua trajetória – de Os Amantes e Trinta Anos Esta Noite a O Sopro do Coração e Perdas e Danos, seu último trabalho –, Malle também se expressou com igual desenvoltura no thriller e no policial (Ascensor Para o Cadafalso, Atlantic City), na comédia escrachada (Zazie no Metrô, Viva Maria!), na fantasia de veia surrealista (Lua Negra e William Wilson, seu episódio do longa-metragem coletivo Histórias Extraordinárias, além de, novamente, Zazie), no drama histórico e no filme de época (Lacombe Lucien, Pretty Baby, e novamente Adeus, Meninos). Também um talentosíssimo roteirista, Louis Malle igualmente trabalhou bem tanto com material próprio (e até imensamente pessoal, caso de Adeus, Meninos) quanto em adaptações literárias ou teatrais (como Trinta Anos Esta Noite e Zazie no Metrô) e mesmo de textos clássicos já utilizados em inúmeras leituras, caso de Tio Vânia em Nova York. A versatilidade de Louis Malle atinge até mesmo – coisa rara para um cineasta com filmografia tão sólida na ficção – sua desenvoltura no documentário, gênero em que se iniciou na direção de cinema e para o qual contribuiu com quase uma dezena de filmes, dentre os quais se destacam Praça da República, Vive Le Tour, O País de Deus e A Busca da Felicidade, todos incluídos nessa retrospectiva.

Além desta diversidade, outra característica recorrente da obra de Malle foi sua capacidade de frequentemente provocar polêmica. Em toda sua carreira, Malle tocou sucessivamente em temas controversos como o adultério (Os Amantes e, três décadas mais tarde, Perdas e Danos), o suicídio (Trinta Anos Esta Noite), o incesto (O Sopro do Coração) e a prostituição infantil (Pretty Baby). Todos eles fizeram barulho na mídia, despertaram fúria de determinados setores da sociedade, geraram desconforto, protestos, clamor entre censores. Foram, portanto, filmes social e culturalmente relevantes, que levaram, pela via do escândalo, a sociedade francesa à revisão de valores e a debates enriquecedores sobre comportamento sexual e censura.

Foi em 1958, com Os Amantes, que Louis Malle efetivamente se afirmou como um polemista nato. Ao apresentar uma abordagem do adultério absolutamente livre de julgamentos morais, além de uma famosa nudez parcial da atriz Jeanne Moreau, o filme causou muita polêmica entre setores conservadores da sociedade e despertou a fúria da Igreja Católica em todo mundo. Como consequência, foi proibido ou teve problemas para ser exibido em vários países, dentre os quais a França, os Estados Unidos e o Brasil (onde estreou, tardiamente, com cortes solicitados pela censura). Ao colocar em cheque a hipocrisia da ordem moral vigente no tocante à fidelidade e à submissão feminina, Os Amantes acabou se tornando um marco na modernização dos costumes e um prenúncio da Revolução Sexual que seria colocada em curso ao longo da década seguinte à sua realização.

A polêmica em torno dos comportamentos sexuais retratados por Louis Malle em seus filmes voltaria com toda força em 1978, por ocasião do lançamento de sua primeira obra norte-americana, Pretty Baby. Abordando a questão da prostituição infantil no início do século XX e trazendo no papel central uma atriz de apenas doze anos em ousadas cenas de nudez, Pretty Baby gerou grande controvérsia graças ao que pode ser considerada a primeira exposição de uma pré-adolescente nua em um filme de Hollywood. Como resultado, o filme teve três minutos de cenas cortadas para exibição em determinados países (EUA e Brasil, inclusive) e, ainda assim, foi classificado como impróprio para menores em quase todos os países que adotavam esse tipo de censura.

Versátil e polêmica, a obra de Louis Malle ainda hoje merece ser conhecida, apreciada e debatida. Mantém-se viva como um momento luminoso do cinema francês. Ainda que não inclua a totalidade das produções deste talentoso diretor, roteirista e produtor de cinema, a mostra O CINEMA DE LOUIS MALLE promete resgatar e divulgar a impressionante trajetória de um cineasta há muito ausente das telas. Além da mostra de filmes propriamente dita, a ser apresentada em dois espaços culturais diferentes na cidade de São Paulo (CINUSP e CCBB-SP), a programação O CINEMA DE LOUIS MALLE prevê também a realização de um debate no CBBB, no dia 7 de novembro, em torno da polêmica de Os Amantes, com a presença do curador da mostra, Marcos Kurtinaitis, e de Eliane Robert Moraes, crítica literária, ensaísta, tradutora e professora da FFLCH-USP, e a publicação, em 2013, pela COLEÇÃO CINUSP, de um livro ilustrado com filmografia, fotos e textos críticos sobre o cineasta. A possibilidade de ver ou rever na tela grande títulos que marcaram a trajetória deste cineasta de talento ímpar será certamente um motivo de celebração para cinéfilos, estudiosos e interessados em cinema em geral.

Boas sessões!