FILMES DE ESTRADA


Os filmes de estrada remontam a uma tradição ancestral do ocidente: a das antigas jornadas épicas, como a Odisséia de Homero e a Eneida de Virgílio. Nessas histórias, a viagem aparece ora como um movimento de transformação individual através do enfrentamento das dificuldades do trajeto, ora como um gesto de desbravamento de um território e de investigação de uma sociedade. Com isto em mente, o CINUSP Paulo Emílio traz ao público a mostra Filmes de Estrada, onde serão exibidos não apenas os clássicos americanos que ajudaram a consolidar o gênero, como também filmes de outros lugares do mundo que deram outras perspectivas as suas convenções.

Os road movies constituem, desde o final da década de 1960, um gênero profundamente vinculado aos Estados Unidos e à cultura do automóvel difundida naquele país a partir dos anos 50. Com o boom da indústria automobilística após a Segunda Guerra e a construção das grandes autoestradas, o consumo de automóveis se popularizou. É neste momento em que surgem os drive-ins, os drive-thrus e os motéis (palavra formada a partir da junção de motor e hotel). Além disso, é também nesse contexto que surge a geração beat, cuja expressão mais notável é o livro On the Road, de Jack Kerouac: a estrada transforma-se em símbolo de liberdade – a possibilidade de escapar das injunções sociais e da “mesmice” suburbana.

Por sua vez, a contracultura dos anos 60 e 70 apropriou-se deste espírito escapista. Todavia, o fez em chave primitivista, pois almejava uma volta ao estado de natureza, em contraposição à vida urbana. Avessos à fé no progresso e à modernização representada pelo automóvel e pelas grandes estradas, os hippies põem o pé na estrada – ao contrário dos beats, que haviam afundado o pé no acelerador na década anterior . De todo modo, mesmo em outro contexto, pode-se dizer que esse jovem também é incapaz de suportar o peso desta normatização da vida. Nesse sentido, hippies e beats carregam consigo uma semelhança irrevogável com o cowboy dos filmes de faroeste: os vaqueiros não encontram um espaço nas convenções sociais – são demasiado “selvagens” para tanto, se deslocam através de planícies e estradas intermináveis. Pode-se dizer que, de certa forma, o road movie americano é uma atualização crítica e jovem do western.

No entanto, mesmo tendo se estabelecido em um contexto especificamente estadunidense, os filmes de estrada caíram no imaginário mundial. Evidentemente, muitas dessas produções visaram apenas a transposição de uma fórmula de sucesso para seu respectivo mercado cinematográfico. Porém, em outros casos, a estrada continua a ser retratada como espaço das descobertas subjetivas e corporais, ao mesmo tempo em que as convenções formais do gênero são totalmente subvertidas. Não há espaço para o culto à velocidade e o elogio ao progresso técnico; a estrada é uma figura metafórica do afastamento entre as pessoas – ensejado pela própria modernidade industrial.

Por estas razões, a mostra Filmes de Estrada  tem por objetivo traçar um espectro amplo e diverso dos chamados filmes de estrada. Reúne tanto filmes que inspiraram o surgimento dos road movies, como alguns clássicos americanos que contribuíram para forjar o gênero, além de apropriações diversas. Serão exibidos filmes que estão nas origens do imaginário da estrada (como Vinhas da Ira de John Ford, Aconteceu Naquela Noite de Frank Capra, O Mundo Odeia-me de Ida Lupino, O Salário do Medo de François Cluzot e A Estrada da Vida de Frederico Fellini), além de alguns filmes que se tornaram clássicos da contracultura (como Sem Destino de Dennis Hopper e Zabriskie Point, de Michelangelo Antonioni), e obras que subvertem convenções do gênero: Iracema - Uma Transamazônica de Jorge Bodansky e Week-End à Francesa de Jean-Luc Godard. A mostra também abriga alguns filmes que contribuíram para uma atualização do gênero, como Sem Teto, Nem Lei, e Paris, Texas de Wim Wenders, Medo e Delírio em Las Vegas de Terry Gilliam, Pequena Miss Sunshine de Valerie Faris e Johnathan Dayton, e Minha Felicidade de Sergei Losnitza.

A diversidade de títulos da mostra Filmes de Estrada visa compreender filmes que lidam à sua maneira com as convenções estabelecidas pelo gênero. Ainda assim, eles podem ser divididos em dois grupos, de acordo com os usos da viagem na estrada: ora a viagem representa uma imersão na história de uma sociedade, vinculando-se de imediato a uma espécie de crítica da cultura – o que parece ser os casos de Vinhas da Ira, O Salário do Medo e Iracema - Uma Transamazônica; ora se configura como um percurso existencial, uma trilha de autoconhecimento e transformação de si mesmo – como, por exemplo, em Morangos Silvestres de Ingmar Bergman,  A Estrada da Vida e Pequena Miss Sunshine.

Boas sessões!