III MAIA - MOSTRA AUDIOVISUAL INTERNACIONAL EM ARQUEOLOGIA


Entre os dias 25 de novembro e 1º de dezembro de 2013, a MAIA – Mostra Audiovisual Internacional em Arqueologia, abrigada desde 2011 pelo CINUSP Paulo Emílio, chega à sua terceira edição. O evento, ainda novo na cena cultural paulistana, procura, a cada ano, abrir-se como uma “nova tela” no vasto universo de interesse da arqueologia, desde seu proceder como ciência, às narrativas elaboradas sobre a humanidade e sua história. Em outras palavras, a ideia que anima a MAIA é revelar a arqueologia não apenas enquanto disciplina entre as ciências humanas, mas, sobretudo, em seu potencial narrativo, todavia pouco experimentado como linguagem. Ao abranger, no limite, tudo aquilo que desvela a própria existência cultural da humanidade, no tempo e no espaço – existência que constrói e habita paisagens –, a arqueologia então se abre em múltiplas perspectivas, pelas quais (re)descobrimos e (re)construímos tantas e diversas histórias. Daí podermos nos referir a este evento como “nova tela” em que são projetadas narrativas audiovisuais: cada uma, ao modo de cada, participa deste sentido maior da arqueologia.

Este ano, em sessões especiais, duas produções abrem e concluem a III MAIA com uma viagem à Floresta Amazônica. De Werner Herzog, a mostra exibe Aguirre, a Cólera dos Deuses, obra essencial do diretor alemão, inspirada no relato quinhentista do monge dominicano Gaspar de Carvajal sobre uma expedição armada em que colonizadores espanhóis buscaram por El Dorado na Amazônia. O filme penetra e transita por dois universos paralelos: aquele em que a personagem é a “grande selva”, que oculta a mítica cidade do ouro, e aquele do poder, personificado em Lope de Aguirre, personagem histórico interpretado magistralmente por Klaus Kinski, visto enlouquecido pelo desejo de domínio, na alegoria da conquista imaginária. A Amazônia também se faz presente nesta mostra em Fordlândia, documentário dirigido por Marinho Andrade e Daniel Augusto que retoma a história das ruínas da cidade implantada por Henry Ford às margens do rio Tapajós, no Pará, em um projeto que visava suprir a indústria de pneus com fornecimento estável de matéria-prima. Dois filmes que retratam, em tempos e lugares distintos, porém sob a mesma vastidão da Amazônia, o próprio sonho de cidade – seja aquela imaginária, seja aquela real, então construída – em sessões especiais com narrativas sobre homens que se aventuraram movidos pelo poder.

Certos vestígios arqueológicos do passado indígena da Amazônia, em contraste com a realidade dos povos remanescentes, testemunham o impacto destrutivo da conquista a partir da “descoberta” – segundo o olhar europeu – de um “Novo Mundo” que foi violentamente explorado. Artefatos milenares, redescobertos pela arqueologia, mostram indícios das grandes populações que a floresta abrigou e de suas culturas diversas, muitas delas desaparecidas desde então. Todavia, aqueles vestígios mais recentes, a exemplo das ruínas de Fordlândia, junto aos fatos contemporâneos, contam como a imensa floresta, passados os séculos, continuou a ser devastada, por novas e controversas frentes de exploração.

Por essa via, a III MAIA provoca o debate em torno da apropriação e transformação de paisagens no curso da história, mas também sobre o direito à cidade e sua história. Os filmes da programação abrangem outros temas que transitam pelas realidades urbanas: o confronto entre as memórias de lugares que se quer conservar e os objetivos do mercado imobiliário que, para lucrar, suprime tais memórias assim abrigadas em construções que virão abaixo, a exemplo do tecido residencial de cidades como São Paulo e Paris. Histórias de Morar e Demolições, documentário dirigido por André Costa, recorre ao dispositivo de uma produtora fictícia – com o sugestivo nome de Caracol Filmes – para divulgar via panfletos e faixas colocadas em certas áreas da cidade de São Paulo, aquelas com intensa atividade de incorporadores imobiliários, a seguinte propaganda: “leve a memória de sua casa com você; leve em vídeo!” No momento em que se prepara para mudar, pois a casa em que vivera desde a infância está para ser demolida, uma mulher encontra o panfleto e procura a produtora. Além desse relato, o documentário mostra outras três famílias que vivenciam a mesma realidade – a destruição iminente do lugar em que viveram por tanto tempo – e produzem registros de seus lares, inclusive dos objetos ainda ali presentes. Em Paris, a pressão do mercado imobiliário – sob a chamada “renovação urbana”, linguagem publicitária que promove a “modernização” de velhos tecidos da cidade – atinge Belleville, bairro parisiense significativo desde o seu passado operário e, sobremodo, pela diversidade de pessoas que habitam esse lugar de morada de imigrantes. 10, Rue Lesage, Belleville é o endereço de um prédio centenário deste bairro, que será em breve demolido. A partir de relatos de seus moradores e do antropólogo Marco Antonio da Silva Mello, que interage com seus habitantes, o documentário produzido pelo Laboratório de Etnografia Metropolitana (LeMetro/IFCS-UFRJ), que tem por subtítulo Arqueologia Urbana de um Bairro Popular Parisiense, mostra o mesmo drama social, vivenciado por muitas comunidades das grandes cidades: nele, as pessoas também incorporam o vídeo como instrumento de registro de vivências durante a própria realização do documentário, um instrumento para se “escavar memórias”. O dispositivo dos autores, nesse caso, passa pela própria pesquisa de Marco Antonio, tomada como mote para se descobrir a essência do lugar, aproximando-se dos moradores de Belleville – que, por sua vez, vêem aproximar-se a profunda transformação de seu bairro.

Voltando a São Paulo, cidade destino de tantos fluxos migratórios, a mostra aborda questões similares por meio do nosso documentário São Paulo Via Rio Novo. No contexto de uma trajetória de estudos dedicados a compreender e documentar técnicas vernáculas de construção da casa brasileira, eu e o documentarista Luiz Bargmann viajamos algumas vezes ao Maranhão, mais precisamente à região dos chamados “Pequenos Lençóis Maranhenses”, até conhecermos José e Rosilda, habitantes da pequena Rio Novo (atual Paulino Neves). Em 2007, o casal já se mudara para a nova casa construída pelo próprio José, com ajuda de amigos. As paredes são de adobe – o milenar tijolo – feito também por ele, retirando argila do próprio terreno, como documentamos em 2003. Ao visitá-los novamente, mostramos fotografias da antiga casa, toda em taipa de mão, coberta com as enormes folhas do buriti. As fotografias foram o dispositivo para ampliar a conversa, quando perguntamos sobre São Paulo, morada atual de alguns de seus parentes e amigos. Eles imaginam a vida em uma das maiores metrópoles do mundo a partir das notícias que chegam pelas pessoas e, sobretudo, pela TV. Revela-se, então, o contraste entre diferentes modos de vida, entre aquele que na cidade é considerado arcaico e o que no deserto se considera como violência. Duas paisagens, dois tempos distintos: a vida tranquila da morada simples e acolhedora de José e Rosilda; a vida agitada da grande cidade, cerceada por violências, como aquelas expressas tanto na morada de periferias faveladas quanto naquela vertical, valorizada, em condomínios vigiados.

Três documentários que reúnem memórias pessoais construídas em lugares destas três cidades, memórias que também participam daquelas coletivas, na vivência comum e compartilhada do imaginário que as grandes cidade evocam.

Em outra paisagem, agora no Uruguai, vê-se no documentário Los Narradores del Caraguatá, dirigido por Gabriel Souza, a redescoberta de vestígios do passado indígena na região de Tacuarembó. Arqueólogos e antropólogos pesquisam antigos territórios e se aproximam dos habitantes de povoados desta região. De seus relatos, surgem opiniões criticas a partir da compreensão que elaboram sobre o lugar e confronta-se o discurso político incorporado como história oficial da jovem nação: ao renegar aquele passado, tal discurso promove, como retórica, a imagem de país civilizado que, ao valorizar os vínculos com a cultura urbana europeia, quis apagar a memória da própria existência indígena no território uruguaio, a exemplo dos montículos (elevações artificiais) que remanescem na paisagem contemporânea – os “cerritos” –, vestígios de povos ancestrais que lá habitaram.

No seu conjunto, as sessões da III MAIA podem se constituir em uma boa oportunidade para refletirmos sobre os rumos de paisagens diversas, com seus testemunhos nelas inscritos, no tempo em que vivenciamos tantas transformações – em grande parte motivadas pelo poder econômico – a suprimir ou esconder histórias de lugares. Esta mostra nos lembra de que essas narrativas audiovisuais, em seus respectivos suportes, podem também elas ser consideradas artefatos arqueológicos, testemunhos de histórias e imaginários. E algumas delas, ainda, como instrumentos para se “escavar memórias” inscritas na paisagem cultural humana.

 

Silvio Luiz Cordeiro
arqueólogo e documentarista, diretor da MAIA