CONTRO-SGUARDI: RETROSPECTIVA DO FESTIVAL INTERNACIONAL DE CINEMA ANTROPOLÓGICO


Introduzir um festival de cinema antropológico é falar de olhares, encontros e diálogos: muitas visões estão em jogo e muitas pessoas se envolvem para realizar o evento. Visões e pessoas que trazem seus próprios “olhares”, cruzando-os e (re)produzindo miscigenações em constante transformação. Isso vale ainda mais quando se pensa em um festival que, já no nome, apresenta a proposta de ser um “Contra-Olhares”, um olhar sobre o olhar, ou um encontro de olhares. A primeira edição do festival internacional de cinema antropológico Contro-Sguardi fora de Perugia, cidade italiana onde foi fundado e que sediou as edições anteriores, marca um novo deslocamento de olhares e, mais do que isso, suscita vários encontros de olhares. É esse espírito que move a realização da mostra CONTRO-SGUARDI: RETROSPECTIVA DO FESTIVAL INTERNACIONAL DE CINEMA ANTOPOLÓGICO na cidade de São Paulo, entre os dias 14 e 30 de abril de 2014. A escolha de realizar essa retrospectiva do Festival em São Paulo deriva da vontade de ampliar esses diálogos, esses encontros e esses contra-olhares.

Uma iniciativa da Associazione Contro-Sguardi em parceira com o CINUSP Paulo Emílio e com o LISA – Laboratório de Imagem e Som em Antropologia da USP, com apoio do Instituto Italiano de Cultura de São Paulo, da Associação Indígena Bebô Xikrin, do Centro de Estudos Ameríndios da USP e do Cine Livraria Cultura, o evento oferece ao público paulistano a chance de assistir, pela primeira vez, a uma retrospectiva dos filmes de maior destaque exibidos no âmbito do Festival Contro-Sguardi na Itália ao longo dos últimos cinco anos. A programação da mostra ocupa a sala de exibição do CINUSP na Cidade Universitária, a sala Carlos Reichenbach do Centro Universitário Maria Antônia e o Cine Livraria Cultura 2, reunindo trinta e dois documentários internacionais de curta, média e longa metragens, premiados pelo Festival, e outros seis curtas-metragens documentais brasileiros realizados por antropólogos e produzidos pelo LISA, que há anos colabora com o Contro-Sguardi. Nessa programação, buscou-se conectar produções das escolas de antropologia visual italiana e brasileira a produções selecionadas no panorama internacional. Tal diálogo traduz o que desde sempre norteou a antropologia: a possibilidade de estender o próprio olhar para além das fronteiras de “casa”, permitindo indagações sobre as várias multiplicações de olhares. Os filmes selecionados permitem andar pelos continentes mostrando várias perspectivas para entender a contemporaneidade, migrando de uma percepção para outra em um incessante movimento de produção de novas experiências e formas de observá-las, cruzando as perspectivas na produção de inúmeros “contra-olhares”.

O Festival Internacional de Cinema Antropológico Contro-Sguardi surgiu em 2008 na Itália, no âmbito do curso de doutorado em antropologia desenvolvido em colaboração entre as universidades de Perugia, de Cagliari e de Siena. Um pequeno grupo de alunos estava à procura de formas de ultrapassar as barreiras – etnográficas e temáticas – entre as respectivas pesquisas. A escolha da forma de promover essa aproximação recaiu sobre o que parecia ser um instrumento tremendamente promissor: o vídeo etnográfico. O uso das mídias visuais, de fato, permite aproximações muito mais diretas entre diferentes abordagens e âmbitos teóricos, pois conecta de forma criativa e inesperada múltiplos agentes: os etnógrafos, os “nativos”, os cineastas e os espectadores. Essa escolha respondia também ao desejo de levar a reflexão antropológica para fora das aulas acadêmicas e colocá-la para dialogar de forma produtiva com um público não especialista. O vídeo, além de aproximar olhares treinados ao exercício antropológico de observação e encontro com o “outro”, permite colocar em diálogo os olhares mais distantes sobre as mais variadas possibilidades de se organizar a vida humana na contemporaneidade.

A partir das experiências acumuladas ao longo das edições do Festival realizadas desde 2008, torna-se fácil reconhecer algumas características marcantes da proposta do evento. Uma primeira é que a trajetória do Festival evidencia a importância de construir diálogos em múltiplos níveis: o evento surgiu a partir da busca de pontos comuns entre “campos” diferentes, o que evidencia a importância de contaminar-se no encontro com “outros” diversos, traço característico da prática antropológica. Assim, o filme etnográfico torna-se instrumento de confronto e de troca entre pesquisadores, gerando a possibilidade de uma primeira camada de “contra-olhar”, na busca incessante de novas sugestões. Mas essa possibilidade deriva de uma peculiaridade própria dessa modalidade visual específica, que busca outro encontro: com o “nativo” capturado na sua cotidianidade. Mas esse nativo já não é mais um objeto estático e subjugado da pesquisa, mas sim, como bem evidenciam os filmes apresentados nas várias edições do Festival – assim como a evolução histórica da antropologia visual –, um sujeito ativo que tem que ser levado a sério na sua capacidade de apropriação e ressignificação das próprias ferramentas audiovisuais. Encontramos assim produções fílmicas que apresentam um olhar externo sobre o exótico, outras que buscam uma produção compartilhada e outras, ainda, que invertem esse olhar. O Festival sempre procurou evidenciar essas três modalidades de encontro visual, percorrendo, em um contínuo movimento de ida e volta, e construindo ao redor de eixos temáticos específicos, os encontros entre as múltiplas formas de utilizar o vídeo.

Essas diferentes formas, por sua vez, permitem, além do diálogo entre campos etnográficos diferentes, perpassar a linha temporal, colocando ideias e metodologias umas diante das outras, ao lado das outras, em cima das outras, num outro “contra-olhar” que permite observar um filme com o olhar de outro. Como já deve estar claro, o filme não é uma simples reprodução de imagens neutras, mas veicula dinâmicas específicas de produção (mais ou menos compartilhadas e dialógicas) de verdades diferentes. Assim, a possibilidade de contrapor filmes, contemporâneos ou de épocas diferentes, produzidos por etnógrafos ou cineastas exóticos, de longa ou curta duração, abre múltiplos olhares novos. Na contraluz, ou no contra-olhar, de um filme, o seu outro fílmico adquire novos sentidos, novas dimensões semânticas antes ocultas ou de difícil percepção. Temos assim um Festival que nos oferece um espaço e um momento para revisar produções “clássicas” da etnografia sob uma nova luz e, ao mesmo tempo, para contaminar as produções mais recentes, de jovens cineastas, com novas ideias, oriundas de outros filmes, de outras trajetórias etnográficas, de outras preocupações epistemológicas.

Mas isso não esgota as possibilidades. Temos mais um nível de encontro, ou olhar recíproco, que o Contro-Sguardi perseguiu ao longo de seu percurso. A partir da constatação de que muitas vezes a discussão antropológica tem dificuldades em alcançar o grande público, os organizadores sempre perceberam a urgência de abrir o Festival para espectadores não especialistas, que, por sua vez, pudessem acrescentar e enriquecer o evento com outros olhares alternativos e peculiares. Ao longo do Festival, portanto, sempre se procurou organizar projeções em lugares públicos, abrindo um diálogo entre as salas universitárias e os espaços utilizados também pelos não acadêmicos.

Todos esses aspectos – a busca por diálogos entre velhas e novas formas de produzir antropologia visual, a vontade de contaminar os diferentes campos de pesquisa num movimento de aproximação recíproca e a marca da horizontalidade do encontro – fizeram do Contro-Sguardi um momento especial e específico no panorama dos festivais de antropologia visual. Desse modo, o Festival adquiriu uma personalidade própria, como espaço de encontro entre diferentes propostas, incluindo também formas expressivas aparentemente desconexas dos materiais audiovisuais de cunho etnográfico, como a vídeo arte, as performances artísticas e musicais e assim por diante.

A direção que o Festival tomará não nos é possível saber, pois ele mesmo se propõe um evento em constante transformação e redefinição no encontro de outros olhares. A retrospectiva das edições anteriores do Festival realizada agora em São Paulo acompanha justamente a trilha seguida até hoje. Temos aqui a possibilidade de assistir a uma seleção de filmes já exibidos pelo Festival, permitindo um novo olhar sobre essas obras. Uma multiplicação de perspectivas recíprocas que constitui um importante momento dialógico. Diálogos que, se desde sempre ofereceram à antropologia a possibilidade de estender o próprio olhar para além das fronteiras de “casa”, hoje nos permitem interrogar-nos sobre as várias multiplicações de olhares e de “casas”, que o vídeo etnográfico permite explicitar de maneira exemplar.

A nossa expectativa é que estes momentos de olhares recíprocos, encontros e diálogos não se esgotem no âmbito do Festival, mas sim – como tem acontecido com o Contro-Sguardi até hoje, no que talvez seja sua verdadeira especificidade – contaminem quem participa com um contínuo processo de deslocamento através do encontro com múltiplos outros olhares, com múltiplos movimentos de contínua abertura de novos pontos de vista, com inúmeros “contra-olhares”.

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