TESOUROS DO CINEMA MEXICANO EM QUATRO TEMPOS


Durante as décadas de 30 e 40 do século passado, o México viveu um nacionalismo revolucionário oriundo das camadas sociais historicamente mais desprotegidas. Naquele momento, a arte saía aos muros da cidade e aos espaços públicos buscando projetar o imaginário da era pós-revolucionária. Ao mesmo tempo em que o cinema mexicano ecoava tal retórica, também buscava a construção de uma identidade própria como linguagem e reflexo daquelas histórias de personagens marginais e seu heroísmo para sobreviver. Se, por um lado, falava-se do povo e de sua coesão ante as injustiças de tantos, também se fazia eco, durante os anos 1950, sobre aqueles outros solitários e esquecidos.  A força do desejo e dos sonhos, pela primeira vez, sacudia as telas do sob o olhar surrealista do melhor e mais universal cineasta que já cruzou o cinema mexicano: Luis Buñuel.

Refletindo um pouco dessa rica trajetória, o CINUSP Paulo Emílio, em parceria com a Universidad Nacional Autónoma de México, apresenta a mostra TESOUROS DO CINEMA MEXICANO EM TRÊS TEMPOS, que integra a ampla programação de cinema, teatro e debates promovida no âmbito da XIII Sessão da Cátedra Ingmar Bergman em Cinema e Teatro da UNAM, a primeira dessas jornadas a ser realizada fora do México, que ocupa também a SP Escola de Teatro, no centro de São Paulo, e a Tenda Cultural Ortega y Gasset, na Cidade Universitária. O projeto visa estreitar as relações culturais entre esta instituição de ensino e a USP, bem como trazer à tona a discussão acerca da cultura mexicana em suas diversas vertentes e seus processos de desenvolvimento dentro dos ambientes universitários mediante seus contextos políticos. Visando a fortalecer o diálogo e a reflexão, algumas sessões da mostra são apresentadas por professores e pesquisadores da UNAM, como Abril Alzaga, Albino Álvarez, Everardo González e Gabriel Rodríguez.

No CINUSP e no Centro Universitário Maria Antônia, a programação de cinema do evento se divide em quatro programas distintos. O programa TESOUROS DO ACERVO DA UNIVERSIDADE reúne quatro longas-metragens de ficção considerados clássicos absolutos do cinema mexicano, exibidos em cópias restauradas em película e pertencentes ao rico acervo da Filmoteca da UNAM, de nomes como Rubén Gámez, Paul Strand, Arcady Boytler, Luis Buñuel, José Rovirosa, Dominique Jonard, Ismael Rodríguez e Emilio “Indio” Fernández, artistas com brilho próprio no firmamento do cinema mundial.

Já o programa TESOUROS DA FICÇÃO CONTEMPORÂNEA se volta ao que de mais recente o cinema mexicano produziu em matéria de longas-metragens ficcionais de impacto e apelo universal. Apresentando ao público dois longas-metragens recém-finalizados e inéditos no Brasil, além de um dos grandes destaques internacionais do cinema mexicano recente – Luz Silenciosa, de Carlos Reygadas –, essa seção da mostra atesta a crescente produção e a qualidade dos filmes advindos de escolas de cinema, produtores e cineastas independentes, resultado do estímulo governamental ao cinema mexicano nos últimos anos. Nesses três filmes, os temas são tão diversos como a origem de seus autores, que representam paulatinamente a riqueza cultural de seu país e suas particularidades.

O programa TESOUROS DO DOCUMENTÁRIO CONTEMPORÂNEO, por sua vez, contempla cinco documentários de longa-metragem de temas e abordagens igualmente diversos e inegável impacto emocional. Historicamente, o documentário mexicano tem estado muito próximo das lutas sociais e dos processos de mudança. Hoje, os cineastas continuam a tratar das histórias que ocorrem longe de nossa percepção. As contradições do sistema, como expressões da violência política, deixam entrever o lado mais intolerante do Estado e, em contrapartida, a força e a coragem dos indivíduos que lidam com matéria tão brutal. Resta à sociedade reconhecer e dar valor à riqueza de caráter, ao empenho e à solidariedade comunitária dessas pessoas, tão bem refletidos nas obras aqui selecionadas.

Por fim, o curta-metragem mexicano, que ganhou ímpeto nos últimos anos mediante o incentivo de políticas públicas e tem produzido uma notável filmografia, é contemplado no programa TESOUROS DO CURTA-METRAGEM. Aqui estão reunidas onze obras de curta-duração, divididas em duas sessões, que novamente se distinguem pela diversidade de seus estilos, temas e gêneros. Há espaço para ficções contemporâneas, adaptações históricas, trabalhos de caráter mais ensaístico e até mesmo para animações e produções dos anos 1960 hoje já consideradas clássicas. A sua visão em conjunto evidencia de que maneira o curta se estabelece como porta e janela de expressão para técnicas e gêneros da linguagem visual, presentes no cinema mexicano e com raízes na literatura e nas artes visuais.

A seleção de filmes apresentados na mostra obedece à necessidade de mostrar o contexto da arte contemporânea com sua matéria prima, proveniente das raízes populares do século passado e, particularmente, com os filmes que foram marcos e referências do desenvolvimento histórico do cinema mexicano: Redes, Los Olvidados, Salón México e Los Hermanos de Hierro. Esses não são os únicos, mas são aqueles que nos parecem de alguma forma conectar-se com um tipo de cinema que influenciou gerações no nosso país: o Cinema Novo brasileiro. Há alguma semelhança entre seus campos e cidades, seus desertos e trópicos, assim como, infelizmente, a violência e seu crescente desafio.

Durante a década de 1990, há um salto qualitativo ao abrir a indústria mexicana a novos talentos de cineastas, sobretudo ingressados das principais escolas de cinema. Há quase trinta anos, teve início uma espécie de movimento telúrico ou de força silenciosa que pouco a pouco, na ficção e especialmente no documentário, impulsionou o cinema mexicano para além dos circuitos tradicionais de exibição comercial e de seu caráter hollywoodiano. Aparecem tentativas de transportar temáticas com formatos simples, coloquiais, descontraídos, íntimos e poucos solenes. Da mesma maneira surge uma abertura para o humor em nossa histórica tradição melodramática. O cinema mexicano segue viagem, convidado pelos principais festivais do mundo e reconhecido por sua vitalidade criativa, que se torna um dos seus maiores atributos. Hoje em dia, coexistem no cinema contemporâneo do México diversas gerações de cineastas contribuindo com seu talento e seu olhar para uma realidade que, se por um lado os sufoca, também os estimula a transcendê-la e registrá-la para evitar seu esquecimento.

A diversidade de temas e suas abordagens é o que enriquece o cinema contemporâneo mexicano. Nem sua homogeneidade, nem seus prêmios e reconhecimento, e sim o legítimo desejo de experimentar novos caminhos. Como uma vez disse Caetano Veloso, “México e Brasil são duas energias fortes, muito fortes”. Curtas e longas, emblemáticos e recentes, documentais e ficcionais. Assim é o menu cinematográfico oferecido nessa oportunidade de aproximação dos jovens – e outros nem tão jovens – cineastas mexicanos com o público brasileiro.

Albino Álvares