OUVIR IMAGENS


Entre os dias 1 e 19 de dezembro, o CINUSP Paulo Emílio apresenta um conjunto de filmes que têm em comum a presença do som como elemento central, abordado sob perspectivas semânticas, morfológicas e estéticas não ortodoxas e que, para além da resignada relação entre som e imagem, tentam resgatar o sentido da audição como parte essencial da arte e da vida. Abandonando a pretensão de reunir exemplos representativos e partindo de uma curadoria heterogênea que não privilegia a noção de história como uma evolução linear, mas que permite a presença de narrativas simultâneas e pontos fora da curva, buscamos levantar questões acerca de diversos assuntos da “auricultura” cinematográfica. Este apanhado geral não se debruça sobre nenhuma teoria específica sobre o som no cinema. Ao invés, tenta enxergar uma relação entre a obra e o espectador através do diálogo com seu repertório prévio, do aguçamento perceptivo e das eventuais rupturas que isso possa provocar.

Muito já se falou sobre o cinema ter sido sonoro desde sua invenção: o acompanhamento musical sempre existiu, seja a cargo de pequenos conjuntos e pianistas solistas, seja com a grandiloquência de orquestras sinfônicas. Com isso tenta-se justificar, por um viés tecnológico, a impossibilidade temporária do som sincronizado à imagem no mesmo suporte, admitindo que a “vocação realista” do cinema, nos termos do crítico francês André Bazin, inevitavelmente resultaria em um movimento natural em direção à presença do som e da imagem, revelando a realidade.

Entretanto, o som, rebelde por natureza, não emana apenas dos dispositivos convencionais que compõem o espetáculo. Enquanto o cinema ainda não se consolidava como atividade ritualística coletiva de imersão e as salas de exibição prescindiam de um isolamento acústico engenhoso, as vozes do público e o ruído da cidade moderna participavam da experiência. Dessa forma, o cinema não apenas não era silencioso, como também se inseria na criação e reprodução de um imaginário sonoro pertencente a um tempo e a um espaço. A ausência de som direto provocava um alargamento perceptivo rarefeito, decorrente da relação entre o audível (o ambiente real) e o inaudível (o gesto, a fala, a movimentação dos objetos, os elementos naturais no filme).

Meio século mais tarde, quando a reconfiguração do paradigma artístico já havia sido relativamente assimilada, o compositor americano John Cage escancarava essa presença eterna de interações sensoriais e propunha que a música passasse a explorar eventos sonoros. Trocando em miúdos, ele sugeriu que não deveria haver hierarquia entre sons e que era preciso “deixá-los livres”. Nessa época, o cinema já era efetivamente “sonoro”, com códigos bem estabelecidos sobre os procedimentos de utilização dramática dos sons, principalmente no cinema clássico americano. Tais procedimentos os compartimentavam de acordo com suas funções na narrativa, dentro de algumas categorias – ambiente, voz, efeitos – e se mantêm, até os dias de hoje, com variações que acompanharam as inovações tecnológicas. No sentido oposto, diversos realizadores, certamente em diálogo com as visões de Cage sobre a liberação sonora, se preocuparam em desenvolver experimentações em vários níveis de intensidade com este elemento.

Deste modo, quando trazemos obras como O Céu de Lisboa e Aquele Querido Mês de Agosto, é devido à presença de personagens técnicos de som que imediatamente nos oferecem um ponto de escuta privilegiado, subjetivo, atento. Os curtas de Norman McLaren demonstram que, ao riscar diretamente a pista sonora para obter ruídos sincronizados às formas, o controle da técnica também pode significar liberdade criativa. O Baile e Shirin levam ao extremo a presença de determinado registro sonoro – respectivamente, música e voz off. Blue e Wochenende são dois filmes temporalmente distantes, mas cujas formas tocas na mesma questão: uma vez que somos privados do espetáculo imagético e impelidos a ouvir, em um ambiente convencionado para receber projeções articuladas entre som e imagem, como a mente se comporta para suprir essa lacuna? No outro extremo, Vento e Areia, um filme silencioso cujas imagens contêm uma imanência sonora constantemente estimulada, nos indaga se, afinal, é preciso escutar para ouvir. Esses e diversos outros assuntos comprovam a potência artística do som e a variedade de possibilidades discursivas que o cinema permite ao combiná-lo a imagens. Esperamos despertar a curiosidade nos espectadores que possa se traduzir em questionamentos direcionados a uma consciência sonora efetiva.

Além de exibições de filmes, programamos alguns eventos especiais. Primeiramente, em parceria com o Instituto Goethe de São Paulo, contaremos com a presença do cineasta austríaco Peter Kubelka apresentando seu mais recente projeto, Monument Film, seguido de uma palestra com o diretor. Ao longo de toda sua filmografia, Kubelka explorou com simplicidade e idiossincrasia as relações entre imagens, ritmo e ruído. Teremos também um debate com o compositor Lívio Tragtenberg e o editor de som Fernando Henna sobre a fronteira entre a música e o ruído, a intermidialidade entre cinema e música e o processo de criação do músico que também trabalha com imagens. Além disso, visando estimular a produção artística feita dentro da Universidade e como forma de ocupar nosso espaço de exibição com outros tipos de atividades, convidamos alguns grupos musicais para se apresentarem: a Camerata Profana, orquestra de improvisação formada por alunos de Música da Escola de Comunicações e Artes, que realiza pesquisas de repertório e linguagem instrumental; o grupo Personne, que desenvolve um diálogo com o cinema experimental, ora produzindo intervenções em filmes, criando uma trilha ao vivo, ora elaborando peças originais que extrapolam o contexto musical e incorporam outras linguagens; e o Conjunto de Música Antiga da USP, convidado pelo CINUSP para uma performance após a exibição do filme Crônica de Anna Magdalena Bach, obra de extrema importância na história do cinema, devido à aproximação que realiza entre imagens e registro musical.

Boas sessões!