MOSTRA AS FACES DE JOHN CASSAVETES


Eu falei para meu pai: “Não quero ir para faculdade. Quero ser ator.” Ele me olhou profundamente e, quando eu já me preparava para ouvir uma boa bronca, disse: “Isso é muito nobre de se fazer. Mas você sabe que tipo de responsabilidade é essa? Você terá de ser verdadeiro com cada um dos personagens e com cada natureza humana”. John Cassavetes teve essa conversa como seu pai ao informar seus planos de seguir carreira artística após o término do colegial. Talvez, ela sintetize a essência dos filmes e o modo de fazer cinema de John Cassavetes, calcada profundamente em relações afetivas, na complexidade humana.

Entre os dias 17 de abril e 15 de maio, o CINUSP exibe 18 obras significativas da trajetória de John Cassavetes, contemplando trabalhos dele como diretor, como ator para TV e cinema e como diretor-ator de uma mesma obra, além de dois documentários sobre a sua carreira. Ao traçar um olhar amplo para sua trajetória artística, a mostra almeja expor ao público o fluxo constante entre vida, arte e trabalho inerente  à obra deste realizador. Nome incontornável na história do cinema independente americano, Cassavetes construiu majoritariamente sua carreira como cineasta de maneira autônoma, desvencilhada dos grandes estúdios de cinema. Além disso, também é mencionado como “o melhor diretor de atores do cinema” pelas atuações com elementos de improviso, apresentadas em seus filmes. A curadoria da mostra busca atentar que por trás dessas qualidades, há uma relação com atividade cinematográfica particular e extremamente pessoal. A partir dos filmes de John Cassavetes e do indivíduo que ele foi desvela-se que a sua experiência dentro do cinema se conecta de forma íntima com sua própria vida. “Ver qualquer um dos seus filmes, é como estar com ele. É um lugar único” disse o consagrado ator Jon Voigt. O CINUSP convida o público a explorar as várias faces de John Cassavetes e notar como a expressão cinematográfica faz parte da sua vida, ao mesmo tempo em que a sua vida faz parte da sua expressão cinematográfica.

John Nicholas Cassavetes nasceu em Nova York no dia 9 de dezembro de 1929. Formou-se, em 1950, na American Academy of Dramatic Arts – lá conheceu sua futura esposa, companheira de vida e de cinema, Gena Rowlands. Logo, começou a atuar no teatro e a conseguir participações na televisão e no cinema. Um trabalho na TV significativo desse período foi uma atuação no antológico programa Alfred Hitchcock Apresenta, no episódio: Você Tem Que Ter Sorte. No cinema, ganhou um primeiro destaque pela atuação no filme Um Homem Tem Três Metros de Altura, do diretor Martin Ritt. Essas duas obras foram programadas na mostra de forma a ilustrar um período formativo de Cassavetes diante dos processos audiovisuais. Por volta de 1956, passou a dar aulas de interpretação para uma pequena turma de alunos. Durante uma dessas aulas, um exercício de improvisação inspirou Cassavetes a conceber seu primeiro longa-metragem como diretor: Sombras. As aulas de atuação se tornaram laboratório de criação para o filme, Cassavetes conseguiu articular elementos reais, espontâneos e improvisados dos jovens envolvidos no filme – inclusive dele e de sua inexperiência técnica - e transformá-los em estética. Sombras foi produzido de maneira completamente independente e teve dificuldades para chegar às telas dos cinemas. Mesmo assim, ganhou o Prêmio da Crítica do Festival de Veneza de 1960.

Desde Sombras, já se pode notar um traço determinante que permeia toda a filmografia de Cassavetes como diretor: as personagens de seus filmes sempre são movidas pelo amor - ou pela falta dele. Cassavetes era uma pessoa apaixonada e complexa, e seus filmes reverberam isso demonstrando um profundo interesse pela necessidade do ser humano amar e ser amado. “Preciso que os personagens analisem o amor. Que o discutam, o destruam, o matem e magoem-se umas às outras”, relatou Cassavetes. Dessa busca, ele conseguia exprimir de seus personagens: virtudes, fraquezas, vícios, contradições e, a rigor, humanidade. As fronteiras entre o bem e o mal, a malícia e a ingenuidade, o riso e choro, a loucura e a sanidade relevam-se esfumaçadas e a ambiguidade prevalece.

A primeira obra cinematográfica de Cassavetes chamou atenção de Hollywood, de modo que ele foi requisitado para dirigir dois filmes dentro do sistema dos estúdios americanos, sendo A Canção da Esperança, também presente na mostra, o primeiro deles. Porém, ao longo da produção dos filmes, Cassavetes teve diversos problemas com os estúdios por conta da excessiva burocracia e hierarquização do processo. Por outro lado, essa passagem por Hollywood impulsionou sua carreira como ator. Nesse período, John Cassavetes passou a marcar presença em significativas produções para a televisão e para o cinema. Na tela grande, ele teve atuações marcantes na obra Os Assassinos, de Don Siegel, e no célebre Bebê de Rosemary, de Roman Polanski.

Em 1968, ele escreve e dirige Faces. A realização do filme é a sua primeira parceira mais significativa com sua companheira Gena Rowlands. Faces demorou 3 anos para ser filmado e não é equivocado dizer que só foi concluído por conta do modo quase familiar de realização: baixíssimo orçamento; os atores e os técnicos da equipe eram, antes de tudo, amigos que trabalhavam pela amizade; a casa de John e Gena era locação principal, base da produção e ilha de montagem do filme; etc. O filme recebeu três indicações ao Oscar, entre elas a de Melhor Roteiro Original e Melhor Ator Coadjuvante para Seymour Cassel. É interessante notar como suas experiências como diretor e ator, mesmo que por vezes se distanciem esteticamente, se unam tão determinantemente em uma perspectiva pragmática: seus trabalhos como ator financiavam seus filmes independentes. A partir desse período, Cassavetes teve atuações importantes em A Fúria dos Intocáveis, de Giuliano Montaldo, Mikey and Nicky, de Elaine May e A Fúria, do renomado Brian de Palma. Assim, atingiu um patamar de respeito e consolidou sua carreira como ator, chegando a atuar em 80 produções. Juntamente, sua trajetória como diretor também seguiu um movimento ascendente e suas obras começaram a alcançar uma maturidade estética cada vez maior.

“Toda a graça está em fazer um filme, não nas glórias que ele traz”, diz Cassavetes no episódio da série televisiva de documentários Cinéastes de Notre Temps, dedicado a ele e que será exibido nesta mostra. Seu processo de trabalho era o mais importante momento da experiência cinematográfica para ele, determinante para os desdobramentos estéticos apresentados em seus filmes. Desde a escritura do roteiro até o momento que em que uma cena seria gravada, todas as etapas apresentavam um exaustivo grau de cuidado e trabalho. Porém, em nenhum momento Cassavetes fechava as portas para o imponderável e para a liberdade artística dos seus parceiros (atores e técnicos). Assim, a recorrente romantização de que seus filmes eram feitos totalmente na base do improviso dos atores e da câmera é desmistificada. O improviso existia, porém ele estava implicado em um intenso trabalho prévio. O documentário sobre Cassavetes A Constant Forge, que programamos como uma sessão especial devido a sua longa duração, revela todas essas facetas do processo criativo de John. Portanto, existia uma ativa colaboração e, principalmente, uma grande confiança entre as partes.

Em 1970, Cassavetes dirige seu primeiro filme como ator-diretor: Os Maridos.  Ele contracena com dois de seus grandes amigos, os atores Peter Falk e Ben Gazzara. Posteriormente, em 1971, Cassavetes dirige Assim Fala o Amor, trabalhando novamente com Gena Rowlands e Seymour Cassel. Notoriamente, o tempo e a experiência fizeram muito bem a John e às pessoas que trabalhavam com ele. Possivelmente, todos passaram a compreender melhor o processo criativo de Cassavetes, principalmente ele próprio. O auge de sua carreira como cineasta virá com seus três filmes seguintes: Uma Mulher Sob Influência, A Morte de um Bookmaker Chinês e Noite de Estreia. Lançando mão de estéticas mais maduras, os filmes obtiveram grande aclamação da crítica e um maior reconhecimento do público. Em, Uma Mulher Sob Influência, Gena Rowlands e Peter Falk vivem um relacionamento que tensiona as fronteiras entre a completa paixão e a loucura. Cassavetes recebeu a indicação ao Oscar de Melhor Direção pelo filme. A interpretação da problemática e incompreendida dona de casa, Mabel, rendeu a Rowlands indicação a estatueta de Melhor Atriz. Posteriormente no A Morte de um Bookmaker Chinês, Cassavetes explora o gênero do “filme de gangster”, dando a ele nuances e contornos mais humanos. Segundo análise do crítico Sérgio Rizzo, “a história de Cosmo Vitelli – interpretado por Ben Gazzara - evoca a do próprio Cassavetes: um homem e seu sonho, nadando contra a corrente, cercado de uma trupe na qual confia, prestigiado por um público fiel e persistente até o fim”.

Em 1977, em Noite de Estreia, pela primeira vez na carreira, Cassavetes dirige e contracena com sua companheira, Gena Rowlands. Essa combinação se repete final de sua carreira, em Amantes. No filme, o casal interpreta dois irmãos já em idade avançadas - Robert, um escritor boêmio em decadência, e Sarah, uma mulher frustrada após divorciar-se do marido Jack (interpretado por Seymour Cassel). O reencontro dos irmãos desvela um tipo particular de amor, cheio de ambiguidades. Em Amantes, Cassavetes parece revisitar e compilar muitos elementos de filmes anteriores em uma única obra: a relação entre irmãos foi explorada na família multirracial de Sombras; o terrível isolamento emocional no qual os artistas submergem é o tema de Noite de Estréia; o ex-casal Sarah e Jack remete fisicamente a Minnie e Moskowitz de Assim Fala o Amor; a liberdade almejada pelos três amigos em Os Maridos é a liberdade que Robert tem e acha vazia; a intensidade feminina que se aproxima da loucura em Uma Mulher Sob Influência também está presente em Sarah; a vida noturna que Robert acha tão fascinante foi o tema de A Morte do Bookmaker Chinês.

 

Boas sessões!