MOSTRA PORTUGUÊS FALADO, CINEMA ENCARNADO


Entre os dias 06 de junho e 05 de julho o CINUSP apresenta uma mostra de cinema português, com 21 títulos que datam do fim dos anos 80 até os dias de hoje. Com marcas como a teatralidade, o cuidado com o texto escrito e falado, o interesse no gesto e na figura, a poética cerimoniosa que vai da composição de quadro à montagem, Portugal vem produzindo filmes notáveis.

Quando se pensa no cinema de Portugal é inevitável evocar o realizador Manoel de Oliveira, nascido em 1908 e falecido no último dia 2 de abril, aos 106 anos. Seus três primeiros filmes foram feitos com longos intervalos, mas graças à atenção internacional que Oliveira recebeu, sobretudo a francesa (e a brasileira veio mais tarde, com o apoio de Leon Cakoff), nas duas últimas décadas de sua vida a produtividade deste cineasta culminou com uma média de mais de um filme por ano. Deixar de reconhecer o peso histórico da obra de Manoel para o cinema português, seria como pensar em literatura em língua portuguesa esquecendo-se de Luís de Camões ou Fernando Pessoa. Seria possível fazer pontes entre as obras de Manoel de Oliveira e as de muitos outros artistas de diferentes gerações. Entretanto, o que nos interessa ver nessa mostra do CINUSP é um tipo particular de cinema que o envolveu e que o ultrapassa, muito consciente de sua modernidade e que se faz presente também nos mais jovens.

Ismail Xavier cunhou os termos “transparência” e “opacidade” para diferenciar, na análise do discurso cinematográfico, operações de linguagem que tornam mais ou menos explícito o aparato cinematográfico. Isso significa dizer que é possível um filme produzir um discurso no sentido de esconder que há uma câmera e um autor, como se as imagens projetadas na tela fossem reflexo imediato da realidade, um discurso transparente, característico do cinema clássico; mas também é possível - e essa constatação configura o momento da modernidade na história do cinema - um discurso que se assuma enquanto objeto fílmico, dotado de uma forma própria e visível, ao invés de pretender oferecer um olhar “realista” do mundo. Este seria o discurso opaco.

O Manoel de Oliveira e a Portugal que veremos no CINUSP filiam-se a um cinema moderno, que maneja com muito rigor a transparência e a opacidade de seus discursos. É um cinema que, para ser opaco, não busca distorcer ou obscurecer sua matéria prima. É, antes, um cinema que crê que na própria mise en scène e no texto enunciado como os elementos responsáveis por revelar as virtudes da imagem luminosa e da língua, que é ancestral ao cinema. “A emergência do poético se dá num espaço de clareza” (Ismail Xavier), ou seja, os planos são como “quadros vivos” nos quais cada componente está explícito. A relação entre o plano próximo e o distante é feita de forma a abolir uma hierarquia da proximidade, tudo está em foco. As falas de todos os personagens são claras e inteligíveis, o realismo do cinema está subordinado à palavra.

A intenção da curadoria é compor um conjunto em que aflore a sensibilidade para o que há de teatral e literário no cinema. Existem traços e modos comuns no conjunto dos filmes, em que aparece uma reflexão sobre a maturidade que o cinema atingiu ao longo de sua trajetória histórica, e um estudo sobre a opacidade e a transparência dos discursos. Contudo, isso não significa que não haja diversidade. Os métodos empregados são vários, bem como as visões de mundo, as posturas ideológicas e as condições de realização de cada filme.

De João César Monteiro, temos a trilogia de Deus, conjunto de filmes em que o diretor interpreta o personagem João de Deus. Seu gestual artificial e medido compõe o que se pode chamar de “arte da pose”, maneirismo que encontra no lúdico o seu valor poético. João de Deus é um personagem polêmico e político na sua tranquilidade lasciva.

De João Nicolau, o curioso A espada e a rosa, filme que teve uma passagem meteórica no Brasil durante a 34ª Mostra Internacional de São Paulo e deixou aqueles que assistiram à espera de uma chance de vê-lo de novo. O filme narra a história de um jovem entediado que parte com um bando que pratica sabotagens a bordo de uma caravela pirata.

Outros filmes que foram pouco vistos pelo público brasileiro são os de Vítor Gonçalves. O primeiro, de 1986 o mais antigo da mostra, é curiosamente ainda inédito no Brasil: Uma rapariga no verão. Depois de ter passado pelos festivais de Roterdã e Berlim, este filme ficou esquecido e somente em 2014 teve seu lançamento comercial, mas infelizmente não se estendeu às salas brasileiras. Vítor Gonçalves foi aluno do poeta e cineasta António Reis na Escola Superior de Teatro e Cinema (à época Escola de Cinema do Conservatório Nacional), onde mais tarde passou a lecionar. Somente em 2013 Vítor Gonçalves dirigiu seu segundo longa-metragem, A vida invisível, que também esteve em São Paulo apenas para a Mostra Internacional e que o CINUSP traz agora de volta ao Brasil. Também foram alunos da ESTC os realizadores Pedro Costa (que, em início de carreira, assina a assistência de direção de Uma rapariga no verão), João Pedro Rodrigues, Joaquim Sapinho e Teresa Villaverde - uma geração de cineastas que produziu filmes potentes pela sua rebeldia a partir do final dos anos 80.

De Teresa Villaverde, veremos Os mutantes, que narra as desventuras de três jovens inconformados, que não se encaixam em lugar nenhum. Seu ímpeto explosivo e suas trajetórias vertiginosas são marcas de um filme inquieto, intempestivo na forma. De João Pedro Rodrigues, O Fantasma, filme em que o ator Ricardo Menezes interpreta um homem idealizado, que vive movido por suas pulsões sexuais. Seu corpo é posto em cena, com precisão milimétrica, para dar forma ao mito de Narciso. De Joaquim Sapinho, o doce Corte de Cabelo, filme sobre o primeiro dia de casados de Rita (Carla Bolito) e Paulo (Marco Delgado), dois jovens que, na intimidade de sua relação, vivem pequenas revoluções e os desencantos da sua época.

A religiosa portuguesa, apesar de ter sido realizado pelo francês/norte-americano Eugène Green, carrega os traços da expressividade portuguesa nos atores Leonor Baldaque e Diogo Dória e na paisagem de Lisboa, e constroi uma mise en scène bastante meticulosa. Assim como “A espada e a rosa”, é falado em português e francês, dando a ver uma política das línguas. Oliveira também prezava por uma estética voltada às particularidades de cada idioma quando fez Um filme falado e Palavra e utopia, entre outros. A língua de um povo, para estes autores, é capaz de encarnar o espírito de uma cultura. Quando optam por inserir outras línguas em meio ao português falado em seus filmes, há um efeito inequívoco de trazer a atenção para a forma das línguas, aquilo que cada idioma tem de especial para além do conteúdo das falas. Com isso, o próprio português ganha mais brilho aos ouvidos de quem já o tem por língua materna. A escolha por tornar explícito o artifício da atuação e do uso da língua, com um texto que respeita a escolha de cada palavra e faz reverência à literatura, é um meio de garantir a clarividência e a escuta dos sinais mágicos. O CINUSP organiza um debate na sequência da sessão de A religiosa portuguesa com os pesquisadores e críticos Pedro Faissol e Calac Nogueira, no dia 25 de junho.

O único filme em que o português não é falado é Gente da Sicília, de Jean-Marie Straub e Danielle Huillet. O casal de realizadores tem uma obra que pode ser vista em diálogo com o cinema encarnado de Portugal, por suas concepções estéticas, com uma montagem contínua e uma impostura decidida nas falas. Gente da Sicília é, como a maioria dos filmes dessa mostra, uma adaptação literária. Mas o que faz desse filme uma obra pertinente nesse conjunto é poder vê-lo em paralelo com o filme de Pedro Costa, Onde jaz o teu sorriso?. Assumidamente um discípulo de Straub, Costa dirigiu em 2001 este documentário em que acompanha o casal de realizadores franceses na montagem de Gente da Sicília.

 

Também de Pedro Costa teremos Ossos e Casa de Lava. Se tomarmos o cinema de Costa em simples comparação com as demais produções portuguesas, sem dúvida ele nos parecerá estranho ao contexto. Recentemente em entrevista, ele chegou a reconhecer que há algo de surrealista nos seus filmes mais recentes, o que o coloca numa outra chave de trabalho com o realismo cinematográfico. O que torna interessante ter seus filmes nessa seleção é ver como ele utiliza simultaneamente uma mise en scène meticulosa - a teatralidade portuguesa na sua qualidade opaca - e recursos naturalistas herdeiros do cinema direto, o movimento que desejou a transparência acima de tudo. Seus personagens impávidos parecem pertencer a um outro plano, em que a vida toca as pessoas de maneira tão sutil quanto aterrorizante. O peso da oralidade no seu trabalho também é grande: em “Casa de Lava”, por exemplo, ao optar por filmar em Cabo Verde, relacionando atores portugueses e cabo-verdianos, o choque sonoro entre a língua portuguesa e o criolo é uma síntese do choque cultural e dos conflitos históricos vividos pelas pessoas deste país. O criolo carrega o português no fundo do ouvido e é falado com a solenidade que Costa permite aos personagens.

Como não poderia deixar de ser, trazemos alguns filmes marcantes do realizador Manoel de Oliveira em formato 35mm. Os filmes selecionados são uma pequenina amostra da extensa obra deixada por Oliveira como legado. Veremos Inquietude, Viagem ao princípio do mundo, O estranho caso de Angélica e Non ou A vã glória de mandar. Convidamos o pesquisador Pedro Maciel Guimarães e o crítico Sérgio Alpendre para um debate acerca da obra de Oliveira, após a sessão do filme Non ou A vã glória de mandar no dia 17 de junho.

 

Além destes filmes de Oliveira, teremos os já citados Um filme falado e Palavra e Utopia. Este último conta a história do Padre Antônio Vieira, jesuíta português que destacou-se como orador em missões nas terras brasileiras no século XVII. Sua dedicação à causa dos direitos dos índios e dos judeus foi o que o levou a ser duramente perseguido pela Inquisição.  Para representar uma das fases da vida deste personagem, Oliveira escolheu o ator brasileiro Lima Duarte, sempre consciente da importância do sotaque brasileiro na estética do seu português falado. Como mais uma proposta de colocar Portugal sob um olhar transversal, escolhemos o filme Sermões - A história de Antônio Vieira, de Júlio Bressane para ser visto em diálogo. Esta é a versão de Bressane para a história de Antônio Vieira, aqui interpretado por Othon Bastos. No filme brasileiro também há elementos que preservam a teatralidade e o respeito ao texto escrito, que vão desde os gestos marcados de Othon Bastos nas leituras dos Sermões até uma aparição performática de Caetano Veloso interpretando Gregório de Mattos, cantando os versos de Triste Bahia.

De acordo com a mitologia sebastianista (crença messiânica herdada pelo Brasil) o Rei Dom Sebastião, desaparecido na batalha de Alcácer-Quibir em 1578, deverá voltar um dia à terra sob a forma d’O Encoberto. Tal qual se espera ver o espírito de D. Sebastião encarnado numa figura humana, este cinema procura desvendar os mistérios das línguas e o enigma da linguagem, para que um dia possamos ver, na clareza das imagens em movimento, a encarnação do espírito que anima o mundo.

Boas sessões!

Lorena Duarte


Debate "A Religiosa Portuguesa", de Eugène Green

debate realizado em 25 de junho de 2015, durante a mostra "Português Falado Cinema Encarnado", que esteve em cartaz no CINUSP.
com a presença de Pedro Faissol e Calac Nogueira, críticos de cinema.


Debate "Non" ou "A Vã Glória de Mandar", de Manuel de Oliveira

debate realizado em 17 de junho de 2015, durante a mostra "Português Falado Cinema Encarnado", que esteve em cartaz no CINUSP.
com a presença de Sérgio Alpendre e Pedro Maciel Guimarães, críticos de cinema.