À ESQUERDA DA TELA


Entre 28 de agosto e 18 de setembro o CINUSP apresenta a mostra À Esquerda da Tela, que busca fazer um panorama de filmes não só contestadores, mas que articulam críticas mais profundas à sociedade burguesa e à própria linguagem cinematográfica, tendo como um dos pilares o marxismo. São 18 filmes de diretores e coletivos que pensaram e filmaram politicamente.

Referência em boa parte dos movimentos políticos do século passado, o marxismo influenciou produções artísticas e intelectuais em diversos campos e países. No cinema, impulsionou a busca de novas relações entre a teoria e a prática fílmica (práxis), capazes de analisar e representar criticamente a sociedade capitalista. A frase “Sem forma revolucionária, não há arte revolucionária”, do poeta russo Mayakovski, expressa bem essas questões.

Influenciados pelas questões políticas de seu momento, os realizadores observam que apenas uma dialética própria entre forma e conteúdo, aliada à tomada de posição na luta de classes é capaz de desvelar os mecanismos internos do objeto e da linguagem cinematográfica. Daí o caráter muito experimental dessa produção e a constante teorização por parte dos seus realizadores.

Historicamente, os cineastas soviéticos Sergei Eisenstein e o Dziga Vertov são os expoentes dessa relação mais profunda entre marxismo e cinema. Ivan, o Terrível é um dos grandes exemplos do filmar eisensteiniano, que parte da dialética para pensar a montagem de ficção, para ele a fundação da arte cinematográfica. A partir da tensão e colisão entre as imagens é que o diretor constrói sentido e dá movimento ao filme.

Já Vertov, radicalmente contrário ao drama, irá militar pela importância de um cinema que analise a realidade. Influenciado pelo materialismo dialético e pelo futurismo russo, Vertov defende que a representação fiel da realidade só poderia ser alcançada a partir da articulação de fragmentos que combinados ofereçam uma visão analítica do todo, tal qual um estudo de engrenagens que articuladas compõem uma máquina. Obra-prima de Vertov, O Homem com uma Câmera, será exibido com uma cópia restaurada no CINUSP.

Fora da URSS, mas ainda nos anos 30, o importante dramaturgo marxista alemão Bertold Brecht escreve e co-dirige o filme Kuhle Wampe: ou a quem pertence o mundo?, tentando trazer para a linguagem cinematográfica parte do arcabouço crítico que ele já articulava com o teatro.

Os surrealistas também foram profundamente influenciados pela teoria marxista, recebendo até mesmo apoio e colaborações de León Trótski. O diretor espanhol Luís Buñuel faz uma refinada e profunda crítica anticapitalista emO Anjo Exterminador. Um grupo de burgueses não conseguem sair da sala de jantar, por causa de algo invisível e inominável que os impede. A partir daí Buñuel trabalha a alegoria para expor uma questão estrutural profunda e cara ao marxismo: a impossibilidade de ação da burguesia sem a classe trabalhadora.

Nos anos 60 os Situacionistas foram um grupo de artistas que radicalizaram suas posições políticas e estéticas criando uma leitura do desenvolvimento das relações capitalistas, vendo no que chamaram de “espetáculo” uma forma do fetiche da mercadoria descrito por Marx. Fruto dessas reflexões, A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord é um filme-ensaio, que adapta o livro de mesmo nome. Feito de colagens de filmes, propagandas e fotos desviadas de seu propósito original, a obra é articulada a partir de uma interpolação desse discurso imagético com uma voz em off citando passagens do livro, desconstruindo uma concepção naturalista de som apenas como uma experiência sensorial aprofundada.

O Vento do Leste, do Grupo Dziga Vertov é outro filme que experimenta mais radicalmente essa relação imagem-som. Muito marcados pelas questões dos anos 60, ambos os filmes são ensaios que tensionam o cinema e fazem críticas profundas não apenas à sociedade burguesa, mas também aos governos socialistas da época.

Na América Latina, questões complexas envolvendo a escravidão, as populações indígenas e o imperialismo alimentaram filmes que articulam críticas políticas e cinematográficas. É o caso de A Última Ceia, de Tomáz Gutierrez Alea, que tematiza a escravidão negra, explorando a relação dos personagens mediadas pelos meios de produção e se inspirando no jogo de luz barroco para acentuar as contradições do passado escravocrata cubano. O filme brasileiro Crônicas de um Industrial (exibido em 35mm), de Luiz Rosemberg Filho, ao final dos anos 70, já reflete sobre a derrocada do nacional-desenvolvimentismo imperante até então e sobre a debilidade da burguesia nacional, dialogando a todo momento com o cinema à sua volta.

Do continente ainda exibiremos o curta-metragem Trabalho, também de Luiz Rosemberg e, em raras cópias 35mm: a sátira cubana Morte de um Burocrata, de Alea, e os bolivianos Ukamau e Yamar Mallku - Sangue do Condor, de Jorge Sanjines.

Além dos filmes citados acima exibiremos Relações de Classe, adaptação da novela Amerika de Kafka, feita pelo casal Danielle Huillet e Jean-Marie Straub. Como Se Vê, do diretor alemão Harum Farocki, Um Olhar de Cada Dia, do grego Theo Angelopoulos, A Batalha de Argel, do italiano Gillo Pontecorvo e Cartas da Sibéria, do francês Chris Marker.

No momento de crise econômica, o resgate crítico desse cinema é imperioso, uma vez que ele aponta caminhos possíveis para respondermos diversas questões que pairam sobre nós e, por conseguinte, sobre o próprio cinema na atualidade.

Cauê Teles do Nascimento