GIRLS WITH GUNS - MULHERES EM AÇÃO
O cinema Hollywoodiano costuma trabalhar com arquétipos de personagens e frequentemente se apoia em noções limitadas de identidade de gênero para dar sentido a suas narrativas. Filmes de Ação, em especial, costumam estar identificados diretamente com o universo masculino, do protagonista até o público-alvo. Por esse motivo as esporádicas aparições de personagens femininas como protagonistas no gênero estimulam as leituras de viés feminista. Levantando o debate de qual o lugar da mulher nessa produção, e se o aparente deslocamento de sua figura possui algum potencial questionador, o CINUSP apresenta de 18 de setembro a 04 de outubro a mostra Girls With Guns - Mulheres em Ação. Serão exibidos 11 filmes norte-americanos com elencos encabeçados por mulheres.
As formas de representação da mulher no cinema norte-americano vêm sendo discutidas principalmente a partir dos anos 60 pelas teorias feministas do cinema. Em seu artigo “Prazer visual e cinema narrativo”, Laura Mulvey analisa por intermédio da psicanálise o voyeurismo no cinema clássico, destacando o uso de oposições entre o gênero masculino e feminino, que dá ao homem a posição ativa, o olhar, e relega a mulher à posição de passividade e impotência sob a qual o olhar é imposto. O protagonismo feminino abala essa noção de passividade, bem como padrões culturais associados aos gêneros, mas a fisicalidade do cinema de ação, que trabalha no extremo do exibicionismo, pode colocar a figura feminina em tratamento fetichizado.
Mad Max - Estrada para Fúria, lançado em 2015, apresenta uma narrativa localizada num futuro pós-apocalíptico, com mulheres abusadas como escravas sexuais parideiras, em fuga e rebelião contra um poder masculino tirânico. Max é o protagonista de direito, uma vez que a franquia leva seu nome, entretanto ele possui menos tempo de tela e falas que Furiosa, a protagonista de fato e líder do grupo em deslocamento. O filme foi motivo de comoção, tanto de entusiastas do lugar de destaque dado às mulheres , quanto de parte do público que se irritou ao ver Max perder influência na resolução de conflitos.
Além disso, enquanto para alguns assistir a mulheres protagonizando cenas de violência expressa um desejo de libertação, como resposta ao abuso e à opressão, para outros, a violência é compreendida como característica do patriarcado. No processo de identificação proposto pelo cinema narrativo, essas personagens estabelecem exemplos negativos, galgando espaço de destaque por intermédio daquilo que há de pior identificado como característica masculina.
A figura da femme fatale presente no gênero noir é recorrente exemplo da fetichização e passividade descritas por Mulvey. No filme de 1944, A Dama Fantasma, aparece um primeiro lampejo de mudança de papéis atribuídos à mulher, onde a personagem se desloca da figura de objeto de olhar para observadora, comandando a investigação. Tal protagonismo, porém, é amparado por um homem, o detetive oficial, e transcorre em função de outro homem, por quem a heroína do filme é apaixonada.
Entre as produções de grande porte, Alien - O Oitavo Passageiro convida a mulher à experiência, quase inédita até então, de conduzir uma narrativa engenhosa de ficção científica. O sucesso de bilheteria à época do lançamento do filme e seu atual status de cult desmistificaram a crença existente no período de que a mera presença de uma mulher como protagonista pudesse prejudicar seu potencial comercial, motivando a criação de novos papéis de destaque para mulheres no gênero. A questão que emerge então é se a forma como a protagonista se apresenta é demarcada por características masculinizantes ou conservadoras: imponente fisicamente, militarizada e alinhada ao poder institucional. O mesmo processo se dá em Exterminador do Futuro 2 - O Dia do Julgamento. A personagem Sarah Connor retorna como figura combativa, agora mais musculosa e portando armamento pesado. Na animação da Disney Mulan, a personagem efetivamente assume o papel masculino, fazendo-se passar por homem para participar da ação. Seria somente se aproximando de uma aparência e iconografia dita masculina que a mulher pode figurar como líder das narrativas de ação?
Thelma & Louise abre novo território para a representação de mulheres armadas, de maneira que a posse do revólver confere a essas mulheres comuns, distantes de contextos abertamente violentos, mas oprimidas cotidianamente, uma nova perspectiva de ação, alterando seu estar no mundo. Essa tomada de armas e descoberta de nova faceta das personagens virá a um alto custo. Vale ressaltar que o roteiro foi escrito por uma mulher, Callie Khouri. A Hora Mais Escura, dirigido por Kathryn Bigelow, coloca sua personagem no centro da trama de busca pelo líder da Al-Qaeda, Osama Bin Laden. O filme é o único título presente na mostra dirigido por uma mulher - tal qual a proporção de diretoras mulheres nas maiores bilheterias de Hollywood
Apesar do noir A Dama Fantasma, o debate das mulheres como protagonistas do cinema de ação começaria efetivamente mais tarde, na década de 70, personificado na figura da atriz Pam Grier, estrela do blaxploitation. Essa produção surgiu à margem do mainstream mas plenamente inserida na cultura pop, em resposta a um contexto de subrrepresentação do negro no cinema norte-americano, dando a ele o protagonismo, embora não abandone inteiramente estereótipos. Em Coffy, Grier aparece fortemente erotizada como uma enfermeira que sai pelas ruas para vingar a morte de sua irmã, se rebelando contra figuras de poder que contribuem com o tráfico de drogas (policiais corruptos, traficantes, cafetões…).
Mais tarde, nos anos 90, Até as Últimas Consequências, tem como protagonistas quatro amigas negras, pacatas moradoras da periferia de grande cidade, que após uma série de infortúnios resolvem realizar assaltos a banco em busca de independência financeira. Salvo a presença destes filmes, a curadoria da mostra evidencia os enormes déficits de representatividade em Hollywood, vide a ampla predominância de títulos que colocam em evidência mulheres brancas, cisgênero, heterossexuais, de aparência em pleno acordo com os padrões de beleza vigentes em narrativas alheias a comentários de classe.
Dada a considerável influência da cultura de massa na formação do indivíduo contemporâneo e de sua visão de mundo, é importante que sejam discutidas as formas de representação da mulher no cinema que impera no inconsciente coletivo. Esperamos ao apresentar esse conjunto de filmes oferecer subsídios para fomentar tão relevante debate e compreender se nessa produção o protagonismo feminino se reduz à estratégias de comercialização ou abre espaço para um verdadeiro empoderamento da mulher no cinema.
Boas Sessões!
Nayara Xavier