ÁFRICA LUSÓFONA
Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo Verde[1] são países que compartilham uma história. Com independências recentes, estes territórios experimentaram, em um curto espaço de tempo, a euforia da libertação conquistada e as profundas tensões do processo de construção de nações forjadas e marcadas pela exploração colonial portuguesa. Suas produções cinematográficas, tão recentes quanto as autonomias políticas, vinculam-se intimamente aos contextos histórico-sociais, apresentando-se como expressão de identidades nacionais em consolidação e como lugar de articulação entre arte e política. Entre os dias 30 de outubro e 14 de novembro o Cinusp Paulo Emílio, em parceria com a FFLCH, convida seu público a conhecer esta produção, usualmente com pouco espaço no Brasil, e que, embora em processo de desenvolvimento, já carrega consigo uma história significativa, como poderá ser visto na Mostra Luta, memória e liberdade: Cinema da África Lusófona.
Da fase das lutas de libertação, passando por longos períodos de guerras civis até os dias atuais, está na ordem do dia do cinema desses países discutir o contexto social, fazendo dos eventos e características locais mais do que um pano de fundo, mas elementos propulsores das narrativas. Sambizanga, produzido ainda durante a luta de independência de Angola é um exemplo disso. O filme retrata o início da luta de libertação, a partir da perspectiva de uma mulher em busca de seu marido, militante do MPLA, preso. Baseado em novela de Luandino Vieira, o filme dirigido pela francesa Sarah Maldoror e com roteiro de Mário Pinto de Andrade, ex-presidente do MPLA, opta por privilegiar o ponto de vista feminino, criando um protagonismo diferente do presente na obra literária.
No período pós-independência a produção foi marcada pela preocupação em estabelecer diálogos entre forma e conteúdo, resultando em filmes que buscam novos padrões de representação para narrar a luta contra a dominação portuguesa. Foram fundados pelos governos recém-estabelecidos institutos nacionais de cinema, motivados pela crença na sétima arte como ferramenta capaz de veicular ideias revolucionárias e recuperar e reinventar as tradições culturais locais, até então sufocadas.
Mueda, Memória e Massacre, de Ruy Guerra, diretor nascido em Moçambique e radicado no Brasil, trabalha entre o documentário e a ficção, entrelaçando depoimentos de membros da FRELIMO a registro de uma representação teatral do massacre ocorrido em junho de 1960, quando soldados portugueses abriram fogo contra manifestantes em Mueda matando centenas de civis. Produzido pelo Instituto Nacional de Cinema de Moçambique e divulgado à época de seu lançamento como a primeira ficção fílmica realizada inteiramente no país, o filme constrói uma história oficial avessa à narrativa criada por Portugal.
O anseio pela revitalização da identidade nacional estimulou o cinema a estabelecer diálogo com outras formas de expressão. Canta meu irmão, ajuda-me a cantar liga-se à música moçambicana, trazendo para o cinema o repertório de algumas das tradições populares. Em Angola, um exemplo dessa relação é o documentário O Ritmo do N’gola Ritmos, que mostra a trajetória do grupo musical N’gola Ritmos, símbolo de resistência cultural, e suas relações com o MPLA. Em sessão conjunta será exibido Luanda, Fábrica de Música, documentário relacionado ao ritmo contemporâneo kuduro, muito presente na cultura popular atual entre a juventude angolana.
Em diálogo com a literatura, o filme representante de Cabo Verde, Ilhéu da Contenda, adaptação de obra literária homônima, volta-se aos processos de modernização social e econômica da década de 60. A decadência da burguesia portuguesa e a ascensão social dos mulatos e mestiços são planos de fundo para pensar uma nova forma de sociedade. A trilha musical é interpretada por Cesária Évora.
Em algumas produções recentes é notória a tendência do olhar retrospectivo e, com o fim do financiamento estatal, os filmes, realizados em sua maioria como co-produções com países europeus, utilizam-se de narrativas clássicas para questionar aspectos até então silenciados pela historiografia oficial nacional. No angolano Na Cidade Vazia, a diretora Maria João Ganga escolhe o ângulo da infância para refletir sobre os efeitos da longa guerra civil no país e sobre a vida da capital, Luanda.
O brasileiro Licínio Azevedo, tendo ido para Moçambique na década de 70, tornou-se um dos mais prolíficos cineastas em atividade no país. Serão exibidos dois títulos do diretor. O documentário A Última Prostituta estrutura-se a partir de entrevistas com pessoas envolvidas no envio de prostitutas a centros de reeducação para mulheres, medida tomada para “limpar as ruas”. O filme motivou a produção da ficção Virgem Margarida, que se baseia em casos do documentário. Os filmes apresentam perspectiva crítica às opções políticas do Estado.
Para além dos traços comuns mais marcantes, a produção cinematográfica destes países, embora limitada pela falta perene de recursos e de um sistema de distribuição, é bastante diversificada. Representante da Guiné-Bissau e filme mais recente da mostra, A República Di Mininus, história de fantasia, pode ser interpretado como um relato distópico de uma sociedade em guerra em que as crianças, abandonadas pelos adultos, organizam-se em torno de inúmeras estratégias de sobrevivência.
Para aprofundar a reflexão sobre as cinematografias africanas lusófonas, no dia 05 de novembro ocorrerá um debate sobre cinema moçambicano com o Prof. Dr. José Luís Cabaço mediado pela Prof.ª Dra. Rita Chaves. Já no dia 11 de novembro, data em que se completam 40 anos da Independência de Angola, ocorrerá um debate a respeito do cinema desta nação com a Prof.ª Dra. Fabiana Carelli.
A produção da mostra contou com o apoio da Prof.ª Dra. Ute Fendler, associada ao Fachgruppe Romanistik da Universidade de Bayreuth, que nos disponibilizou as cópias restauradas dos filmes Mueda, Memória e Massacre, Tempo dos Leopardos, Canta Meu irmão, ajuda-me a cantar e Kuxa Kanema: O nascimento do cinema, além do apoio da Cinemateca da Embaixada da França que trouxe o filme A República di Mininus de Paris. Apesar dos esforços, a equipe do Cinusp não conseguiu encontrar cópias restauradas dos filmes Sambizanga e Ilhéu da Contenda, mas, devido à importância histórica e cinematográfica, decidimos mantê-los na mostra.
A curadoria da mostra é resultado de uma parceria entre o CINUSP Paulo Emílio e o Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa (DLCV/USP), a Área da Graduação em Literaturas Africanas (DLCV/USP), o Centro de Estudos das Literaturas e Culturas de Língua Portuguesa (CELP/USP) e o Centro de Estudos Africanos (CEA/USP) e faz parte das atividades do IV colóquio internacional Áfricas, literatura e contemporaneidade e do II encontro de estudos africanos: abrindo caminhos.
Nayara Xavier
Thiago Oliveira
Com colaboração de Jacqueline Kaczorowski e Nazir Can
[1]Devido à dificuldade de acesso, não serão exibidos filmes de São Tomé e Príncipe e da Guiné Equatorial.