REALISMO FANTASMAGÓRICO


Plano-sequência. Filmagem fora do estúdio. Atores não profissionais. Temas do cotidiano. Todas essas são características típicas de um realismo cinematográfico que tem no crítico francês André Bazin a principal referência teórica. De tempos em tempos, suas ideias são retomadas para discutir novas questões relacionadas ao realismo no cinema. A mais recente dessas retomadas ocorreu com o advento das tecnologias eletrônicas e digitais de captação, edição e reprodução. Especulava-se que essa tecnologia provocaria uma reconfiguração da relação dos humanos com o mundo sensível graças à possibilidade de criar imagens exclusivamente em meio digital, sem a necessidade de um referente no mundo real, a chamada perda da indexicalidade. Em reação a isso, observou-se uma radicalização do realismo cinematográfico, com movimentos como o dinamarquês Dogma 95 lançando uma série de regras que proibiam, ao menos em teoria, a filmagem em estúdio, a utilização de filtros na câmera e a presença de som que não fosse captado na própria cena.

Nesse contexto da virada do século, observou-se também a consolidação da figura do diretor transnacional, advindo de países que tradicionalmente não têm uma produção cinematográfica consolidada, mas que consegue desenvolver uma filmografia firmando parcerias de coprodução com países europeus. Assim, os filmes desses diretores geralmente não têm sucesso comercial em seus países de origem, sendo aclamados posteriormente em festivais internacionais. Nos últimos anos, foi justamente o realismo cinematográfico que predominou como predileção estética desses diretores transnacionais. Entretanto, desde então, uma série de realizadores do leste asiático vem transcendendo essa noção de realidade objetiva ao acrescentar fantasmas e figuras fantásticas entre seus personagens. É importante notar que esse traço diz respeito a contextos culturais e religiosos específicos, mas seu interesse para o desenvolvimento das teorias de realismo no cinema surge no sentido de representar uma complicação dessa apreensão da realidade.

É justamente dentro deste recorte que o CINUSP Paulo Emílio, com concepção e curadoria da profa. Cecília Mello (ECA-USP), apresenta a mostra Realismo Fantasmagórico, em cartaz de 16 de novembro a 06 de dezembro de 2015, acompanhada do lançamento do sétimo volume da Coleção CINUSP de livros e da montagem de uma videoinstalação no Paço das Artes. Sendo uma investigação de tendências ainda não completamente consolidadas, a seleção é composta por 15 longas-metragens mesclando nomes proeminentes, como o tailandês Apichatpong Weerasethakul, o malaio-taiwanês Tsai Ming-Liang e a japonesa Naomi Kawase, com outros ainda em começo de carreira, como Daniel Hui de Singapura e o filipino John Torres.

Também integram a lista alguns filmes clássicos dessa região que dialogam diretamente com o trio de diretores principais. Dragon Gate Inn, filme de artes marciais taiwanês diretamente citado por Tsai em Adeus, Dragon Inn, que será exibido pela primeira vez no Brasil em cópia 4K restaurada, trazida graças ao apoio do Escritório Econômico e Cultural de Taipei em São Paulo.  A cinemateca tailandesa (Thai Film Archive) também possibilitou a exibição de Tongpan, docudrama de 1977 que foi censurado à época e que, dentro de uma genealogia doméstica, ajuda a criar conexões entre a carga política dos filmes de Apichatpong e questões mal resolvidas da sociedade tailandesa, mediadas pela fantasmagoria. Contos da Lua Vaga completa o trio, obra incontornável de Kenji Mizoguchi, que se encontra inserido na tradição japonesa de histórias de fantasmas, muito atreladas à questão religiosa, assim como Shara, de Kawase, mesmo que em outra chave.

Outros destaques da mostra são o documentário Yumen, que retrata uma cidade chinesa em ruínas de forma performática, aglutinando aspectos da memória, da vivência e da nostalgia, e Casa Vazia, dirigido pelo coreano Kim Ki-Duk, cuja abordagem do efeito fantasmagórico se funde de forma ambígua à vida cotidiana, materializada por uma lógica causal no desenvolvimento de uma técnica

Realismo Fantasmagórico também é o título do sétimo volume da Coleção CINUSP. O livro reúne textos de importantes teóricos do cinema em torno das questões que rodeiam a mostra, aprofundando-a. Com várias análises de obras em exibição nas próximas semanas, o livro se presta a refletir, entre outras questões, sobre como os filmes combinam uma fé no realismo com diferentes tradições religiosas asiáticas, como Animismo, Budismo, Taoísmo e Xintoísmo, complicando a harmonia entre o cinema e a realidade objetiva. A profa. Cecília Mello, organizadora do livro, promove um debate no dia 24 de novembro após a exibição de Adeus, Dragon Inn, para discussão do filme e do tema da mostra.

O autor de um dos textos do livro, professor Thomas Elsaesser, da Universidade de Amsterdam, estará no CINUSP no dia 27 de novembro para ministrar uma palestra sobre o tema “Arqueologia das Mídias”. A versão do livro estará disponível no site do CINUSP desde o início da mostra e sua versão impressa será distribuída gratuitamente a partir de sua terceira semana.

Finalmente, em parceria com o Paço das Artes, espaço de divulgação da arte contemporânea dentro da Cidade Universitária, ocorrerá a montagem da videoinstalação Phantoms of Nabua, realizada por Apichatpong Weerasethakul como parte de Primitive, projeto multifacetado que também contempla dois curtas-metragens, um livro de artista e um videoclipe. Nela, um grupo de adolescentes jogam futebol à noite, iluminados por um poste de luz fluorescente e uma tela com projeções de relâmpagos e fogos de artifício, fazendo com que suas peles pareçam pálidas, fantasmagóricas. Com abertura no dia 16 de novembro, a instalação fica em cartaz durante um mês na sala de vídeo do Paço.

Boas sessões!

Cédric Fanti, Lorena Duarte, Pedro Nishi