CLAIRE DENIS: CORPO PRESENTE
A mostra Claire Denis: Corpo Presente, em cartaz no CINUSP entre os dias 18 de abril e 08 de maio, exibirá os 12 longas-metragens de ficção e 2 documentários que compõem a filmografia da roteirista e diretora francesa.
Claire Denis nasceu na França, mas cresceu na África, onde seu pai foi administrador colonial. A vivência em Camarões, Burkina Faso e Djibuti impacta fortemente seu trabalho de realizadora. Ela dirigiu seu primeiro filme, Chocolate, em 1988, inspirado na sua infância em Camarões, cujo universo se desdobrará, mais tarde, no filme Minha Terra, África, de 2009.
Um tema caro à cineasta é o fluxo migratório e os conflitos raciais dos dias atuais. Suas personagens são, em geral, pessoas deslocadas, seja na configuração da cidade global, seja em isoladas estâncias africanas. França e África são campos de vários embates sociais, que aparecem sempre filtrados por uma individualidade arguta.
Filmes como Que Se Dane a Morte!, Noites Sem Dormir e 35 Doses de Rum seguem por esse caminho, explorando os microuniversos de apátridas, imigrantes, desempregados, marceneiros, golpistas, pais de família, assassinos, dançarinos etc. Sem fazer juízo de valor sobre suas personagens, não incorrendo tampouco em complacência, a diretora encontra verdadeiras pulsações de vida — sem ser simplista ou maniqueísta. Em se tratando de conflitos sociais e políticos, há que extrapolar a dicotomia do “bem” versus “mal”. É importante observar a produção de Denis na medida em que suas questões ultrapassam as fronteiras geográficas e políticas dos países em que as histórias estão situadas.
Seus indivíduos ecoam a solidão, a situação de ser estrangeiro, mulher, negro, branco, jovem, de ser um "intruso" em determinado habitat. Para a diretora, "a intrusão é um conceito que contém o que é a humanidade", e seus filmes surgem da experiência de enfrentamento com o que é externo. Denis explicita situações de opressão, em que as personagens se empoderam diante de um conflito ou abuso e reagem com vigor, seja através de ações radicais imprevisíveis ou da impostação sutil de seus corpos.
Claire acredita que "no fazer fílmico é possível descrever um pequeno movimento na percepção do encontro com o outro". Erupções repentinas de emoção ou violência se dão em meio ao tempo cotidiano e à atmosfera de expectativa e ansiedade que contornam suas personagens. Para explorar esse ritmo ondulatório, Denis foi lapidando ao longo dos anos um estilo particular, com uma câmera que passeia bem próxima dos corpos, em planos-detalhe que podem se demorar sobre micromovimentos de uma artéria pulsando (como em Bom Trabalho) ou sobre os enérgicos gestos de preparação de massas de pizza (em Nenette e Boni).
O uso de planos próximos exprime sensualidade e desejos incontornáveis. Corpos humanos e objetos inanimados (pães, roupas, ferros de passar, materiais de laboratório etc.), capturados à proximidade precisa, erotizam-se. Em Desejo e Obsessão o impulso sexual ganha contornos canibais, num tratamento estético que dilui elementos do terror e vai além do gênero. Em outros filmes, a relação com gêneros do cinema clássico também se faz presente: por exemplo, em O Intruso há algo de western, em Que Se Dane a Morte!, de film noir, e no seu mais recente filme, Bastardos, a diretora usa elementos do thriller para construir suspense em torno de um suicídio e de uma rede de exploração sexual.
Os personagens de Denis são manifestações indomáveis com olhares farejadores. O tratamento do corpo e do espaço emana com maior potência através de uma de construção mais fronteiriça à dança (sobretudo a contemporânea) que ao teatro. Na maioria dos filmes, há pelo menos uma personagem dançando. A dança, coreografada ou improvisada, funciona como um monólogo da personagem. Em US Go Home, as jovens protagonistas expressam partes importantes de seus conflitos em sequências de dança, seja num quarto apertado ou numa pista repleta de corpos desejantes. A correlação entre dança e cinema aparece mais explicitamente no documentário Do Lado de Mathilde, em que Denis acompanha o processo criativo de Mathilde Monnier, uma conhecida coreógrafa contemporânea. Já Bom Trabalho retrata a Legião Estrangeira Francesa a partir de coreografias de corpos masculinos, ora escavando o terreno desértico de Djibouti, ora passando com esmero os vincos de seus uniformes militares.
Nos filmes, a câmera — que resulta do trabalho de fotografia de Agnès Godard, parceira frequente de Denis —, persegue a relação de olhares, seja a partir do ponto de vista de uma personagem que observa ou de outra que se sabe observada, e da tensão provocada pelos corpos presentes. O complexo fluxo de olhares aparece já em Chocolate, criando relações entre as personagens que transitam entre a ação secreta e, ao mesmo tempo, flagrada — dentro da própria diegese, num sentido que espelha o olhar do espectador, dando consciência do voyeurismo intrínseco à imagem cinematográfica. No entanto, o próprio voyeurismo é agravado com a consciência do corpo (e não só do olhar), dado o uso de câmera tátil, que explora a experiência do cinema em sua dimensão corpórea e sensorial. Por isso podemos falar de um cinema "voyageur", viajante, de materialidades que se movimentam no tempo, mais que meramente "voyeur".
Antes de se lançar à direção propriamente, Denis trabalhou como assistente de direção para Dusan Makavejev (Sweet movie), Wim Wenders (Asas do desejo e Paris, Texas), Jim Jarmusch (Daunbailó), Costa-Gavras (Hanna K.), entre outros, incluindo o mestre da nouvelle vague Jacques Rivette, cuja relação com Denis resultou no documentário Jacques Rivette, o Vigilante.
Fazendo um uso inventivo e bastante autoral da linguagem cinematográfica, a diretora é um dos grandes nomes do cinema contemporâneo, tendo desenvolvido um estilo de mise-en-scène particular e bastante influente. A mostra Claire Denis: Corpo Presente, realizada com o apoio da Cinemateca da Embaixada da França no Brasil e do Institut Français, traz ao público a oportunidade de travar contato com uma filmografia provocativa, em que grandes inquietações do atual cinema mundial, bem como da sociedade contemporânea, encontram raízes, ecos e reflexos.