INQUIETOS
A mostra Inquietos, em cartaz no CINUSP entre os dias 30 de maio e 12 de junho, traz uma seleção de 10 filmes sobre adolescência e juventude, produzidos entre 1992 e 2014.
O desconforto social e a inadequação às normas de convívio são abordados de forma particular em cada um dos filmes dessa seleção, dado o tratamento autoral que cada diretora e diretor dispensa aos seus personagens e universos. Há experiências de narrativas mais fragmentadas, com profusão de cortes, texturas e registros, como em Gummo, O Cheiro da Gente, ou mesmo Bling Ring; e outras mais contemplativas, que priorizam o plano-sequência e o silêncio, como Rebeldes do Deus Neon, Lições de Harmonia e Elefante. Apesar da diversidade das escolhas formais, há temas comuns, como o sentimento de não pertencimento, o consumismo, o crime, a violência, o bullying, a descoberta da sexualidade, a solidão e a experiência com drogas.
Essas vivências, por mais que não sejam exclusivas da transição entre a adolescência e a vida adulta, encontram terreno fértil justamente nessa fase da vida, em especial por se chocarem com a inexperiência. Muitos atos soam mais assustadores ou mais divertidos quando experienciados pela primeira vez, e é esse frescor que os filmes sobre a juventude preservam. Reside aí, também, muito da força desses filmes, por travarem contato com o público no nível da identificação pessoal.
A inquietude habita esses jovens nos filmes mesmo quando eles estão em silêncio, parados. Há neles uma agitação latente, e à espreita da monotonia cotidiana paira uma violência explosiva. É o caso de Elefante, que agrava o conhecido ambiente da high school norteamericana de tensão e suspense, povoando os intermináveis corredores da escola de ruídos misteriosos, com uso de sons offscreen sem fonte definida. O ritmo cíclico remete a uma experiência de trauma, bem pertinente à expressão do massacre de Columbine, que o filme evoca, dando a impressão de que a qualquer momento algo está prestes a acontecer. Lições de harmonia também explora o universo escolar, mas num contexto bastante diverso, situando a violência adolescente em uma isolada vila do Cazaquistão, um ambiente frio rigorosamente captado em longos planos-sequência estáticos.
O sentimento de desajuste também está presente aqui e pode ser experimentado no próprio corpo adolescente que se estranha, em suas relações familiares, na escola, nas ruas. Nascem daí tentativas individualizadas e muitas vezes arriscadas de adequação, como em Bling Ring, em que o consumo aparece a um grupo de amigas de Hollywood como alternativa de pertencimento, sendo viabilizado, no entanto, somente pelo crime; movimento parecido ocorre em Garotas, em que a normatização estética, de influência americana (nas marcas, nas músicas, nos padrões dos corpos) afeta tanto a aparência quanto o comportamento de um grupo de adolescentes negras que vivem na periferia de Paris.
Filmes de diferentes nacionalidades tratam o consumo como sintoma, escancarando a imposição de padrões culturais nos jovens. No taiwanês Rebeldes do deus neon, as personagens praticam pequenos delitos para sustentar seu vício e lazer no fliperama. O filme faz uso expressivo das luzes da cidade à noite, com seus letreiros luminosos, telas de videogames, pistas de patinação coloridas. O universo visual traduz a sedução das ofertas das luzes da cidade e ao mesmo tempo esmaece as referências espaciais.
Gummo e A Vizinhança do Tigre se utilizam de uma linguagem que destaca o ruído da imagem digital aliada a uma decupagem próxima ao registro documental ou de cinema experimental e constroem universos onde a disparidade social consome quaisquer perspectivas de adequação ao sistema. As ações de suas personagens são muitas vezes banais, carregadas de violência gratuita e hostilidade cotidiana. A marginalização, nesses filmes, tem um caráter de classe bastante marcante — de um lado, os pejorativamente denominados “white trash” dos EUA, jovens pobres de uma cidadezinha de Ohio; de outro, habitantes da periferia de Contagem, cidade da grande Belo Horizonte, em Minas Gerais.
Já em Mobília mínima, de Lena Dunham (criadora da série Girls, da HBO), o desajuste da protagonista se dá no interior de seu lar de classe média norte-americana, e tem motivações nas suas falhas tentativas de afirmação individual após concluir a faculdade. O filme é representante do mumblecore, “movimento” de jovens cineastas surgido nos EUA no começo dos anos 2000, marcado por filmes de baixo orçamento, com uso de equipamento digital, atores não-profissionais e uma profusão de diálogos que misturam apatia e euforia. Nesse movimento, as relações se esbarram com constrangimentos, silêncios, falta de desenvoltura social, em que as expressões de afeto ou sexualidade resultam frustradas.
O sexo aparece como tema central em O cheiro da gente, o mais recente filme de Larry Clark — do aclamado Kids —, mas ganha contornos angustiantes ao empregar muitas vezes uma plasticidade glicht na tela e acompanhar os dias de um jovem garoto de programa que se relaciona com vários parceiros, incluindo homens idosos. Em Os sonhadores, por outro lado, fazendo uso de uma decupagem clássica e um cuidadoso trabalho de direção de arte, um trio de jovens explora práticas sexuais pouco convencionais. A narrativa é permeada por respiros e explosões, seja em andanças por corredores de museus ou em barricadas em chamas onde a violência, muitas vezes, ultrapassa o desejo.
O sentimento de inquietação persiste nesses jovens mesmo quando eles se encontram acompanhados, em breves escapes de diversão e catarse, levando-os à saturação do desconforto e resultando em rupturas radicais. Nesse sentido, suas passagens por corredores de escolas, pelas ruas de Paris ou de Xenia, Ohio, dentro de barulhentas casas noturnas ou shopping centers aparecem como percursos altamente solitários que, no entanto, carregam em si uma potência efervescente. A mostra Inquietos evoca a experiência de transição entre a adolescência e a idade adulta fazendo um convite ao público a perambular pelos caminhos tortuosos e fluorescentes da juventude.