NUBERU BAGU


Entre os dias 13 de junho e 03 de julho, o CINUSP apresenta a mostra Nuberu Bagu, com uma seleção de 15 filmes raros produzidos no Japão entre 1959 e 1971.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o Japão foi ocupado militarmente pelo exército americano, iniciando-se um período de abertura à cultura ocidental que possibilitou uma intensa e diversificada produção cinematográfica. A nouvelle vague japonesa — ou Nuberu Bagu, na pronúncia nipônica do termo francês — surgiu num contexto de profunda agitação política. Ao mesmo tempo em que a inserção do capitalismo no Japão permitia novas liberdades individuais, as mazelas sociais desencadeadas pelo modelo econômico imposto não deixaram de ser percebidas e enfrentadas pelos jovens. Os valores tradicionais japoneses, apreciados pela sociedade conservadora, entraram em choque com as novas ideias. Filmes que retratavam a realidade pré-ocupação, sobre o sujeito comum e sua moralidade apreciável deixaram de representar de fato a conjuntura social da época, perdendo apelo popular e deflagrando um processo de decadência no studio system japonês. Em tempos de angústia e crise, as histórias tradicionais pareciam não mais satisfazer os anseios de um público que se transformava.

Antes da nuberu, na década de 50, esse cinema tradicional viveu sua chamada era dourada. Foi nessa época que a produção nipônica ganhou projeção internacional, recebendo atenção da crítica e de importantes festivais. André Bazin, crítico francês cofundador da revista Cahiers du cinéma, central para o desenvolvimento da nouvelle vague francesa, chegou a afirmar que a descoberta do cinema japonês foi o principal acontecimento cinematográfico mundial depois do neorrealismo italiano. Filme marco dessa “descoberta” foi Rashomon (1950), de Akira Kurosawa, ganhador do Leão de Ouro no Festival de Veneza em 1951 e do Oscar de Melhor filme estrangeiro em 1952. Outros cineastas importantes do período são Yasujiro Ozu, Kenji Mizoguchi, Masaki Kobayashi, Kon Ichikawa e Teinosuke Kinugasa. Histórias moralizantes sobre o cotidiano e épicos de alto orçamento sobre o heroísmo japonês eram desenvolvidos por esses diretores nas grandes produtoras.

O sistema dos estúdios se pautava em uma alta hierarquização de funções, de modo que a direção dos filmes ficava a cargo somente dos funcionários mais experientes. A arte cinematográfica era encarada como um mero ofício e era desempenhada de forma quase artesanal se comparada à produção dos estúdios americanos. Para conseguirem dirigir seus próprios filmes, os jovens precisavam trilhar um longo caminho, a começar como assistentes de direção. Buscando inovação, as grandes produtoras passaram a dar espaço a esses jovens para realizar filmes de baixo custo. Diretores como Nagisa Oshima, Shohei Imamura e Yoshishige Yoshida, antes assistentes dos diretores da “era de ouro”, têm suas primeiras chances e acabam realizando aqueles que seriam os marcos iniciais da nova onda do cinema japonês.

Em 1960, Conto cruel da juventude, de Nagisa Oshima, foi lançado no Japão. Na mesma época estrearam nos cinemas do país os dois filmes ícones da nouvelle vague francesa, Os incompreendidos, de François Truffaut, e Acossado, de Jean-Luc Godard. Dois críticos do jornal Yomiuri shukan não tardaram em enquadrar o filme de Oshima como “nouvelle vague“. De fato, o filme de Oshima guarda semelhanças com o movimento francês, em sua opção por filmar em locação, nas ruas da cidade, tratando de jovens personagens marginalizadas e criminosas. No entanto, o diretor rejeitou o rótulo, bem como seus contemporâneos, que não estavam organizados conscientemente em um movimento e não queriam nenhuma espécie de título que os pudesse limitar. Vale lembrar que, nesse período, Oshima ainda trabalhava na Shochiku-Ofuna, uma das maiores produtoras do Japão, de modo que o despontar dessa nova onda se deu, curiosamente, dentro do próprio esquema das produtoras.

Essa particularidade japonesa é impensável no caso dos franceses da nouvelle vague ou dos ingleses do free cinema, por exemplo, em que a ruptura com os estúdios teve que ser radical e definitiva. Só assim os jovens europeus puderam tomar as ruas com suas câmeras, fazendo cinema independente, livres dos compromissos comerciais, podendo seguir documentalmente o passo de personagens párias, rebeldes, criminosas, melancólicas, isoladas no hostil mundo capitalista, que eles duramente criticaram.

Pouco depois de realizarem seus primeiros filmes, buscando maior liberdade criativa, Oshima, Shinoda e Yoshida se desvincularam das produtoras, cada um a seu tempo e modo, e passaram a fazer filmes independentes, num momento em que outros cineastas independentes também ganharam destaque. A nuberu bagu, ao longo da década de 1960, se fortalecia e ampliava sua influência. Nomes como Seijun Suzuki, Hiroshi Teshigahara, Susumu Hani, Shuji Terayama, Toshio Matsumoto e Kaneko Shindo despontaram.

É curiosa a inserção desses jovens diretores no cinema japonês, que se deu de forma diferente da geração de cinéfilos, estudiosos de cinema e intelectuais apaixonados que compunham a nouvelle vague francesa, em comparação. Eles se inseriram no sistema industrial para trabalhar, de fato. Ainda que Oshima e Hani tenham se dedicado à crítica durante certo período, sua relação com o cinema parece vir de uma urgência que é mais material que intelectual ou artística. Como disse Oshima: “entrei no cinema para viver, porque não tinha encontrado outro emprego.” (Nagib, 1993). Traçando um paralelo com o cinema brasileiro, é possível apontar relações da nuberu bagu com o cinema marginal desenvolvido especialmente nos anos 70 na Boca do Lixo, em que a crítica debochada e agressiva ao passado também se faz presente, com filmes fragmentados, prenhes de cultura pop, violência, sexo e, não raro, improvisação. Nesse sentido, é possível que a radicalidade da nuberu a aproxime mais do cinema marginal que do cinema novo brasileiro.

O primeiro longa de Oshima, Uma cidade de amor e esperança, é um filme de transição, não tão radical em sua forma quanto o que viria a seguir, mas já incisivo em seu conteúdo, de bases marxistas. Ele é marco da abertura para um novo cinema no Japão, abordando uma família de classe trabalhadora que se resume a uma mãe e seu filho, personagens típicas de um cinema atento aos mais explorados e oprimidos. Às voltas com problemas financeiros, o crime subsiste como alternativa, e é praticado justamente pelo mais jovem na história. Existe aí um indício da herança do neorrealismo italiano, movimento que inspirou  os cinemas novos deflagrados pelo mundo, marcado pelo gesto essencial de saída dos estúdios e tomada das ruas como espaço fundamental de filmagem e expressão cultural.

Em várias partes do mundo, o final dos anos 50 e meados dos anos 60 foram marcados por filmes nos quais sentia-se a agitação estudantil, o ímpeto por liberdade sexual, política e de costumes. O movimento estudantil é frontalmente abordado em Noite e neblina no Japão, em que Oshima se vale de elementos do cinema documental para tratar com precisão a agitação política da juventude. Shohei Imamura dirige um dos documentários mais instigantes e perturbadores do período, Um homem desaparece, sobre o misterioso desaparecimento de um trabalhador. Há, nesses filmes, um esforço documental de se reinterpretar e reinventar a história japonesa. Para tanto, faz-se muito uso de câmera na mão, de descontinuidade narrativa, com montagem fragmentada, filmagem em locação, revelação do aparato cinematográfico, dando a ver partes de estúdios, claquetes e equipamentos de filmagem. Joguem fora seus livros e saiam às ruas faz uso de extremo experimentalismo estético para tratar de seu conteúdo espinhoso, que envolve incesto, estupro e violência familiar.

O radicalismo da forma é fundamental também em Nanami - O inferno do primeiro amor, que se empenha em desnudar a consciência perturbada de um jovem abusador e abusado, envolvido em vários incidentes sexuais peculiares. O passado traumático exige do filme um tratamento estético inovador, para dar conta da gravidade do caso de um indivíduo em crise com as imposições afetivas e culturais do novo momento político. O regime militar repressor cede espaço à manipulação das vidas privadas pelas grandes empresas. Surge o fetichismo do consumo, e os produtos americanos, como automóveis e até mesmo cigarros, passam a ser símbolos da nova geração. A imagem de mulheres fumando faz parte do imaginário inovador trazido pela nuberu bagu.

O consumo de produtos culturais importados também se torna frequente. Músicas de rock e jazz exercem papel importante em cenas de especial energia, e os gêneros cinematográficos de Hollywood também têm seu espaço. Se, por um lado, a incorporação da cultura dos EUA é assumida, por outro, ela é criticada e ressignificada. Em Tóquio violenta, a história de yakuza, subgênero tradicional do cinema japonês que é inventivamente explorado na filmografia de Seijun Suzuki, está repleta de deboche direcionado à cultura norteamericana. No filme, homens americanos são vencidos, em briga, até pelas mulheres japonesas. A máfia é tema também de Flor seca, de Masahiro Shinoda, que nega de forma ácida a romantização das relações entre homem e mulher, e de Todos porcos, de Sohei Imamura, filme extremamente mordaz no tratamento dos oficiais americanos e dos membros da máfia. A cinematografia hollywoodiana aparece em O funeral das rosas na chave da paródia, em que gêneros clássicos, do melodrama ao western, são reinterpretados sob a face de suas protagonistas pouco retratadas no cinema — são travestis japonesas que se prostituem.

A tradição artística japonesa, que preza pela economia e pela sobriedade, agrega um valor paradoxal ao arsenal dos cineastas, que sabem se valer de poucos elementos e de um baixo orçamento para construir suas obras recortadas. Os filmes são imageticamente poderosos, rítmicos, agitados, ainda que o modo de produção empregado seja mais contido. Yoshishige Yoshida é mestre em trabalhar com poucos elementos na criação de resultados altamente expressivos e provocativos, como é o caso de Eros + Massacre. A mencionada tradição artística, no entanto, não é vista sem criticidade, como tudo o mais que pertence ao passado japonês. Pois o passado não é menos sombrio que as perspectivas de futuro apresentadas pelos cineastas da nuberu bagu, que muitas vezes só encontram na aniquilação total um destino possível para suas personagens. O passado surge como espaço de atraso e abandono, de caráter rural. Os camponeses passam a servir como mão-de-obra nas cidades japonesas em acelerado crescimento. O que resta no campo é duro. A ilha nua e A mulher da areia vão nesse sentido, explorando a violência e a crueldade interpessoais às voltas com o extenuante trabalho do dia-a-dia rural.

A representação feminina também passa por uma mudança radical nas mãos dos novos diretores. As mulheres até então eram retratadas como donas-de-casa, mulheres “de família”, aspecto que parece enervar os jovens cineastas, a exemplo de Shinoda, que comenta a respeito dos filmes de Ozu: “Quando via aquelas cenas perfeitas com Chishu Ryu e Setsuko Hara, tinha vontade de tirar a saia dela, eles eram puros demais” (Nagib, 1993). Assim, as personagens femininas são apartadas de seu véu de santidade e revestidas de força e resistência, mais do que necessárias no sistema político que as explora e subvaloriza. Isso é marcante em vários filmes do período: em A mulher-inseto, a personagem feminina deixa seu lugar de louvável auto-sacrifício e faz sua escalada pela sobrevivência se valendo dos mesmos jogos sujos que os homens lhe direcionam. São eles os verdadeiros responsáveis pelas tragédias escancaradas no cinema da nuberu. Em Fuga do Japão, um homem tido como “tolo”, zombado pelos companheiros, assoma como um anti-herói de psicologia mais complexa, e é o mais delicado ao lidar com a jovem mulher que acompanha o bando criminoso, na medida em que o filme se aprofunda numa sufocante narrativa de crime e tentativa de fuga.

Os filmes da Nuberu Bagu oferecem uma visão original e pouco conhecida do Japão, escancarando ao próprio público japonês suas mazelas na tela, com uma energia de denúncia e ruptura que era até então inédita. Além disso, as obras ressoam críticas não só ao Japão, mas também à sociedade capitalista ocidental, trazendo reflexões fundamentais às discssões contemporâneas sobre gênero, política e sexualidade. O CINUSP se empenha na difusão dessa cinematografia rara e de difícil acesso, convidando a todos para conhecê-la e se deixar sacudir por seu ritmo subversivo.