FANTASIA — ENTRE O REAL E O IMAGINÁRIO


Entre os dias 25 de julho e 14 de agosto de 2016, o CINUSP exibe a mostra Fantasia — Entre o real e o imaginário, que traz uma seleção de filmes que tratam da relação entre realidade e imaginação.
O cinema é um dispositivo mágico por si, capaz de reproduzir o movimento do mundo com uma precisão que era inédita até sua invenção pelos irmãos Lumière no final do século XIX. Desde então, chamou a atenção não só por sua reprodução da realidade, como também por seu potencial onírico, rendendo desde cedo obras que abordam o fantástico, como os curtas de Méliès e de Chomón. Nesses filmes pioneiros, a imaginação de artistas visionários precisou encontrar soluções inventivas para materializar na tela o produto de sonhos e fantasias.

O uso de truques de montagem e efeitos visuais incipientes, em filmes de enquadramento frontal e sem profundidade de campo — agrupados no chamado “cinema de atrações” —, foi o método encontrado para deixar ver fadas, demônios, sereias e toda uma sorte de seres e lugares imaginários nesse primeiro cinema. Daí deriva toda a inventividade posterior, de cineastas que trilharam caminhos diversos na realização de suas histórias fantásticas. Efeitos especiais de superproduções, animação em stop-motion, direção de arte com ressignificação de objetos cotidianos agravados de carga fantástica, narração que confere à aparente realidade do mundo um teor mágico: várias são as maneiras que o cinema tem de realizar a fantasia, e é nessa diversidade que a presente mostra vai embarcar.

O processo de imaginação envolve tanto a criação dos filmes em si quanto sua recepção pelo público. Assistir a um filme é um exercício ativo, que nos envolve em níveis emocionais, intelectuais, sensoriais, físicos. Faz-se necessária a suspensão voluntária da descrença ao se embarcar numa trama de fantasia. Acreditar é fundamental, tanto para os espectadores quanto para os personagens dos filmes, pois a crença é ingrediente básico de qualquer ato de magia. Nesse sentido, vale ressaltar o potencial imaginativo das crianças, que muitas vezes são personagens e público-alvo de muitas tramas de fantasia, ainda que não exclusivos.

Fonte rica para o cinema fantástico são lendas, mitos, crenças religiosas e discussões filosóficas de diversas partes do mundo, perpetuadas ao longo das gerações pela tradição oral antes de se condensarem em filmes. Obras literárias também fornecem suprimento a muitas histórias.

Em algumas adaptações clássicas, a obra cinematográfica atingiu mais destaque e apelo na cultura popular do que seus originais literários. O mágico de Oz e A história sem fim, por exemplo, são produtos cinematográficos antes de qualquer outra coisa no imaginário universal contemporâneo. Nessas histórias, o lugar mágico é acessado de formas diferentes: em A história sem fim, um livro faz a ponte entre os mundos, revelando um reino habitado por seres mágicos e monstros, com uso da técnica de bonecos animados; já em O Mágico de Oz é um tornado que varre a realidade sépia de Kansas e dá acesso à terra multicor de Oz, toda colorida à mão, num momento de transição do cinema preto-e-branco para o colorido em que muito se debateu a revolução da cor nos filmes.

Jean Cocteau, importante artista de vanguarda do século XX, participante do movimento surrealista francês, faz em 1946 uma adaptação de A bela e a fera que chama a atenção pela riqueza e criatividade de sua direção de arte, usando elementos do mundo real para construir um castelo sombrio, no qual fileiras de castiçais são erguidas por braços humanos emparedados, e estátuas de rostos vivos ficam à espreita e se movem para observar os caminhos da donzela assombrada.

A adaptação de Alice no País das Maravilhas de Jan Svankmajer, Alice, mescla técnicas de stop-motion com atores em live-action, numa versão bastante sombria e inovadora do clássico infantil, surpreendendo pelo tom sinistro imprimido à obra. Já em Branca de neve, João César Monteiro cria um filme extremamente radical, que instiga a imaginação do espectador por via do som, sendo toda a trama escutada, e não vista, diferente do que em geral se espera de um filme.

O ato de contar histórias tem poder de alterar a realidade e criar algo inteiramente novo, como em Herói, de Zhang Yimou, e Peixe grande e suas histórias maravilhosas, de Tim Burton. Nestes filmes, a história dentro da história oferece um leque de possibilidades de desfechos, reencenações e reconsiderações dos temas, mostrando como a imaginação afeta definitivamente o curso dos fatos. Fica claro, assim, como o cinema é um discurso acima de tudo, tratando-se sempre de uma versão imaginada e encenada de uma história.

A trajetória do herói arquetípico, muito abordada nas tramas de fantasia, exerce fascínio no público por deixar ver grandes verdades humanas além de entreter. Os obstáculos enfrentados pelos heróis revelam, muitas vezes, fases da própria vida humana em seu caminho de amadurecimento e autoconhecimento. Nesse aspecto, questões políticas, sociais e filosóficas encontram campo fértil para serem tratadas. O labirinto do fauno é um filme que revela a crueldade de um sistema político opressor, cuja saturação abre as portas para o mundo mágico. Está fundado na história real da Espanha, ainda marcada após a Guerra Civil por combates entre militares fascistas e rebeldes guerrilheiros.

A lenda da fortaleza Suram, inspirado no folclore da Geórgia, também trabalha tensões políticas, numa construção fílmica muito rica e pouco usada na época: Parajanov constrói tableaux vivants, quadros vivos cheios de beleza visual e de detalhes que evocam a cultura georgiana. O uso de tableaux se encontra nas origens do cinema, antes da “descoberta” da profundidade de campo e tridimensionalidade das imagens, e já havia se tornado obsoleto. É usado por Parajanov como recurso político, não só estético, contra a dizimação da história do país e de seu povo. Muita informação visual do folclore é contida dentro do quadro, sem hierarquização do que é mais ou menos importante à apreensão da história. O espectador tem liberdade para percorrer a imagem em seus vastos detalhes, que evocam memória e luta.

Andarilhos do deserto também se inspira em tradições de um povo milenar e parte de um conto tasawwuf, palavra árabe para designar o esoterismo islâmico, conhecido no ocidente como sufismo. O filme-parábola se passa em uma vila cuja existência é questionada já no começo da história, quando uma personagem estrangeira vai ter naquele universo. Os dados fantásticos vão se inserindo sutilmente, nos atos cotidianos do povo do deserto: há uma maldição que arrasta jovens para vagar entre a areia; há uma criança que conversa com o espírito de um poço — até certa altura, só o que vemos é o poço, e ainda assim acreditamos que deve se tratar de outra coisa, de fato.

As crianças são personagens recorrentes no cinema de fantasia, por evocarem a inocência e a crença em outras realidades que, muitas vezes, vão-se esgotando à medida que crescemos. Em Um dia, um gato, são elas que lutam pela vida do gato mágico que dá título à história. O animal tem poder de tornar as pessoas coloridas de acordo com o caráter delas. Ele passa a ser perseguido pelos adultos, apavorados ante a possibilidade de serem surpreendidos em sua hipocrisia. É um filme representante da nouvelle vague tchecoslovaca (Nová Vlna), com bastante inventividade estética, bom-humor e provocação.

A liberdade imaginativa das crianças é central também em Matilda, no qual uma pequena bruxa observa divertidamente a realidade alterada ao seu redor, dada sua imaginação mágica. O Castelo Rá-Tim-Bum, adaptação para o cinema da série clássica da televisão brasileira, também conta com protagonistas infantis, cuja confiança na magia é imprescindível para a resolução dos conflitos.

A palavra, constituinte essencial dos atos de magia, tem poder para transformar a realidade imediata em outra coisa, mesmo no cinema. O mundo vivente modifica a realidade visível por meio do verbo: acreditamos que um homem com seu cachorro é, na verdade, um cavaleiro com seu leão a partir do momento em que ele assim se apresenta; de um ogro, só vemos os pés grandes e peludos e ouvimos a voz cavernosa, e subentendemos que nas sombras reside de fato um ogro inteiro e enorme, porque assim está dito. Em Finisterrae, a necessidade da crença vai no mesmo sentido: corpos cobertos por lençóis se convertem em fantasmas. A imagem tradicional, até mesmo infantil, para representar fantasmas, serve muito bem à criação de figuras espectrais nesse filme.

O realismo objetivo da câmera serve de ponto de partida em O Balão Vermelho, que mostra a história de um garoto parisiense que em um certo dia começa a ser seguido por um balão mágico. Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes e do Oscar de melhor roteiro original, o filme de Albert Lamorisse se utiliza de pouquíssimos recursos de montagem ou efeitos especiais, privilegiando a presença do balão com o menino no quadro e deixando a fantasia para a mise-en-scène.

A reinterpretação de elementos do cotidiano acrescidos de carga sobrenatural, bem como a materialização de seres e universos fantásticos por meio da magia do cinema são formas diferentes mas igualmente potentes da realização da fantasia na tela. Acreditando nisso, a mostra Fantasia — Entre o real e o imaginário convida o público a se deixar iludir (no melhor sentido do termo) pelos domínios mágicos aqui revelados, deixando de lado as noções pré-concebidas da realidade e ampliando sua apreensão do mundo, que só o cinema deixa ver e sentir de forma tão fantástica.

Rena Zoé

Thiago Oliveira