CINEMA GREGO


ATENÇÃO, SESSÕES NO CENTRO MARIA ANTÔNIA ESTÃO CANCELADAS POR TEMPO INDETERMINADO

Numa abordagem ampla da cinematografia grega, com seus pontos de destaque ao longo dos anos, é possível identificar um tema em particular que emerge: a questão da família e as fissuras em sua estrutura. Atentando para filmes de repercussão internacional e de interessante investigação estética, o CINUSP apresenta a mostra Cinema Grego: Família e Ruína, em cartaz entre os dias 03 e 24 de outubro.

O tema não é novo, e se manifesta já na cultura grega da Antiguidade, seja nas tragédias clássicas ou mesmo nos inúmeros mitos de tradição oral que compõem a Mitologia Grega. Ainda assim, ele reaparece com frequência nas ficções do país ao longo da história, sempre com um frescor provocativo. A discussão sobre a instituição familiar é longa e configura um processo que permanece atual.

Duas figuras fundamentais da chamada Era de Ouro do cinema grego, quando este ganhou projeção internacional nos anos 1950 e 1960 são o diretor Mihalis Kakogiannis e a atriz Melina Mercouri. Stella é o filme de estreia de ambos, sendo bastante ousado para a época ao abordar uma figura feminina autônoma, que se nega a se submeter ao ideal de família que lhe tentam impor. Ela tem desejo de liberdade, desfruta do sexo e não quer se casar, a despeito da pressão masculina e social ao seu redor.

Melina Mercouri se cristaliza como ícone de independência feminina não só por Stella, mas também com Nunca aos domingos, que trata, igualmente, de uma mulher liberta que se nega a qualquer domesticação. Sua atuação vigorosa lhe rendeu o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Cannes em 1960.

Mihalis Kakogiannis possui ainda relevante produção de adaptações de tragédias clássicas. Electra, a vingadora, traz traição familiar, conspiração de Estado e planos de matricídio. Ifigênia também trabalha conspiração familiar, dessa vez partindo de um pai, que é também chefe de Estado, contra a filha.

Outra figura importante para o cinema grego é Theodoros Angelopoulos, cuja produção se estende por quase quatro décadas, com obras poéticas e políticas. Nos anos 1970 ele produziu, entre outros longas de forte teor marxista, Reconstituição, em que a ruína de uma família se relaciona com a decadência de toda uma aldeia.

Paisagem na neblina volta-se mais à subjetividade de personagens perdidas. São duas crianças que se movem sozinhas da Grécia à Alemanha em busca do pai desconhecido. O passado familiar é lugar de ausência e abandono. Angelopoulos faz uso extensivo de planos-sequências, filmando espaços frios e vazios que acentuam o sentimento de solidão das personagens.

Seu estilo consagrado lhe rendeu a Palma de Ouro em 1998, com A eternidade e um dia, filme que aborda a família em termos nostálgicos e desesperançosos. A família é inviável de formas diferentes para seus personagens: um idoso, que a perdeu no passado, e um pequeno clandestino cuja aldeia foi dizimada.

Nos anos 1990, com a chegada da já mencionada Melina Mercouri ao cargo de Ministra da Cultura, viabiliza-se a produção de filmes de arte com apoio estatal. É nesse contexto que surge Singapore Sling, paródia sinistra de film-noir, em que uma dupla de mulheres, apresentadas como mãe e filha, cometem os atos mais bizarros contra um homem que mantêm como refém. Escatologia, sadomasoquismo e tortura se sucedem num ambiente decadente e sufocante.

Com o acirramento da crise econômica nos últimos anos, o cinema grego se volta à crítica incisiva da situação política, atentando para o caráter patriarcal do Estado. Jovens cineastas se rebelam contra o status quo e produzem obras de difícil digestão, feitas para incomodar e gerar discussão, a partir de uma abordagem absurda e violenta do cotidiano. Trata-se da “estranha onda” (weird wave), assim chamada pela crítica internacional por seu caráter excêntrico e provocativo.

Expoente dessa geração é o diretor Yorgos Lanthimos, uma das figuras centrais para que o cinema grego voltasse com peso às rodas de discussão no cinema contemporâneo. Seu filme Dente canino foi vencedor do prêmio Un certain regard em Cannes, e aborda a alienação no seio familiar, imposta pelos pais de forma arbitrária e brutal. Alpes também tematiza a desestruturação familiar e escancara o caráter artificial que muitas vezes envolve as relações, com personagens masculinos violentos na imposição de vontades e regras sobre as mulheres.

Athina Rachel Tsangari é uma das poucas realizadoras a receber reconhecimento ao longo da história do cinema grego, tendo sido indicada ao Leão de Ouro por Attenberg, que tematiza conflito de gerações entre em um pai moribundo e de sua filha jovem, que vai se tornando adulta num país que lhe oferece poucas perspectivas positivas. A personagem é um ícone dessa nova geração excêntrica, com ações que muitas vezes atingem o nonsense.

L usa a estranheza ao deslocar situações cotidianas para espaços inesperados, sendo o carro o principal deles, onde patético e trágico se misturam de forma desconcertante.

Xenia trata da relação entre dois irmãos, um gay e um heterossexual, que precisam cruzar o país em busca do pai depois que sua mãe albanesa falece. O filme é um queer road movie, anunciado como “uma nova odisseia grega”, e trabalha o tema do percurso com raiz familiar, relocalizando-o nos tempos atuais, com uma estética bastante pop.

Com forte carga política e afetiva, a instituição familiar pode ser núcleo de proteção e afeto ou de autoritarismo e domínio patriarcal. Até sua ausência física em cena é significativa; seja pela negação da família ou por sua busca, as personagens se movem invariavelmente à sombra dela. Assim, novas configurações afetivas surgem, abrindo vasta potência ao conceito de família. Com esta mostra, o CINUSP pretende promover uma reflexão sobre o caráter e o futuro desta instituição milenar. Boas sessões!

por Rena Zoé